O TOPETE >> Albir José Inácio da Silva

 

- Se cuidasse da cidade como cuida do cabelo... – tricotavam os invejosos porque, apesar dos quase sessenta anos, o topete engraxado do prefeito brilhava sem um único fio branco.

 

No palanque em frente ao posto de saúde, uma faixa indicava o início da vacinação: “Brasil Imunizado – Somos uma só nação!” e o prefeito se esbaldava na retórica:

 

- A maravilha da ciência e a competência da logística nacional trouxeram a tão desejada vacina para o solo sagrado desta cidade!

  

Mas o entusiasmo do alcaide era recente. Até semana passada, ele atacava a vacina e o risco de ela trazer chip com a marca da besta, que altera o DNA, transformando a pessoa, por exemplo, num jacaré e remetendo sua alma aos quintos dos infernos. Não passava de marketing político para gastar dinheiro do contribuinte e desviar o foco do verdadeiro tratamento, dizia. Defendia o tratamento preventivo com remédios milagrosos, baratos e de fácil distribuição, fabricados nos quartéis ou doados pelo Tio Sam.

 

- Melhor que simpatia! – garantia o prefeito e comemorava a inauguração de um site do Ministério da Saúde que identificava, prevenia, tratava e imunizava o paciente de covid: o TRATCOV.

 

Ensaiou e regeu pessoalmente um coral da escola pública que cantava: “Cloroquina, cloroquina, cloroquina lá do SUS, eu sei que tu me curas, em nome de Jesus!”

 

Mas agora tudo mudou.  A vacina virou o milagre da integração nacional e ele nunca defendeu coisa diferente.

  

Despediu-se emocionado, agradecendo a Deus e aos heróis da saúde e da ciência.

 

A enfermeira Joana, veterana nos cuidados daquela gente, ficou responsável pela distribuição das poucas e cobiçadas doses.  Vacinou o pessoal da saúde com critério e honestidade. Para desespero da elite acostumada aos privilégios, imunizou o maqueiro e deixou de fora o dentista riquinho de consultório particular.

 

- Ainda não é a sua vez – dizia ela com firmeza, atenta às prioridades estabelecidas pela OMS.

 

Não adiantaram as pressões por parentes e amigos do prefeito e dos vereadores. Terminado o trabalho ali, saíram para o Abrigo Lar da Esperança, que acolhia os idosos sem família ou cujas famílias não podiam cuidar.

 

Dona Laura, a sempre sorridente diretora do Abrigo, hoje parecia tensa, respondendo com monossílabos aos cumprimentos e perguntas da equipe de saúde. Esta pandemia anda mexendo mesmo com os nervos de todos.

 

No refeitório e sala de televisão instalou-se a vacinação. Um a um os vovôs e vovós foram atendidos. Uma multidão de curiosos acompanhava os trabalhos.

 

Dona Laura se aproximou empurrando uma cadeira de rodas. Nela, encolhido, um velhinho balançava o tronco pra frente e pra trás.

 

- Sua identidade, meu lindo! – pediu Joana. Ela conhecia todos, sabia a doença de cada um.

  

Laura entregou a identidade em péssimo estado, quase ilegível.

 

- O senhor é novo aqui, né, Seu... Abílio? – conseguiu ler.

 

- Chegou esta semana – apressou-se a diretora.

 

- Preciso ver seu rosto, Seu Abílio. É o protocolo. Tire os óculos, a máscara e o gorro, por favor!

 

- Mas que diabo! Pra que tanta burocracia? Minha filha, não seja atrevida! Meus olhos doem com a claridade, meus ouvidos estão inflamados e não é seguro ficar sem máscara! Quer que eu pegue covid? Eu não vou tirar nada! E vamos logo com isso que eu preciso me deitar! – gritou o velho num falsete esganiçado.

 

O ajudante que fazia o cadastro no computador levou um susto:

 

- Dona Joana, este Seu Abílio consta como falecido há catorze anos!

 

Betão foi o PM que recebeu a missão de guardar com a própria vida a carga daquele isopor com vacinas. O sargento dizia que ele desenvolveu mais o físico que o intelectual. Mas era um ótimo policial, diziam todos. Só não gostava de não ver as pessoas com quem falava e aquele velhinho todo escondido e barraqueiro lhe dava alergia.

 

- Vovô, deixa a moça ver a sua carinha, deixa! – falou ele, arrancando de uma vez gorro, máscara e óculos escuros.

 

A enfermeira Joana não conseguiu falar. O tempo congelou até alguns cacoetes. Ouvia-se o vento nas árvores. Mas logo celulares apontaram suas câmeras e um repórter do jornal local aproximou o microfone.

 

- Desculpe, seu prefeito! – ainda gemeu Betão sem entender, mas achando que tinha culpa.

 

- Muito bem! – empertigou-se o prefeito, ajeitando o topete - Vocês estão de parabéns! Passaram no teste! Só queria ter certeza de que estavam atentos e não aconteceria conosco o que vimos por aí, com espertinhos furando a fila. Todos se comportaram muito bem! Sem privilégios! – este será sempre o lema da nossa cidade!

 

Comentários

Nadia Coldebella disse…
Sensacional! Primeiro a cloroquinagem, agora a traquinagem dessa gente sem consciencia. Uma historinha bem real! Já te disse que estou ficando sua fã?
Sandra Modesto disse…
Este recorte entre o politiqueiro do prefeito e dos negacionistas, ficou perfeito no dia do aniversário de São Paulo. Parabéns pela originalidade.
Zoraya Cesar disse…
HAHAHAAHA, D. Albir, essa sua veia satírica tá cada vez mais afiada! ri muito aqui. pior q acho q isso já deve estar acontecendo e que vai acontecer mais. só espero q seja o relato completo, com jornalistas, celulares, e q o digníssimo político ou espertinho, seja quem for, não tenha a mesma verve do cascudo prefeito...
Paulo disse…
Kkkk bem atual. Muito bom!
Muito bom, adorei a rapidez com que o prefeitos e adaptou à situação, perfeito!!!
Paulo Barguil disse…
Entre topetes e torpedos, venceremos os vírus! ;-)
Albir disse…
Obrigado, Nádia, Sandra e Zoraya, Paulo, Afonsina e Paulo Bauguil, pela doçura de seus comentários.

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