SACO DE LIXO >> Carla Dias
Está chovendo há horas. Ensaiei colocar blusa e calça, mas está esse friozinho delícia, do qual andava sentindo tanta falta. Hoje é quarta, apesar de eu ter me pegado chamando este dia de sexta insana. Fiz isso três ou quatro vezes, neste hoje, quarta.
Tenho preferência pelo insano. O sensabor é pior. No entanto, prefiro o insano que não seja feito aqueles valentões de pátio de escola, sabe? Que passam a rasteira nos seus desafetos, oferecendo tombos e horas de autoquestionamento às suas vítimas: pra que sirvo mesmo? Prefiro o insano que desarranja o dia, e, entre um desapontamento e um palavrão, a falta de ar, diante da descoberta de quão errado ele pode estar sobre determinada certeza, oferece um daqueles alívios que fazem a vida valer a pena. Aquele que vem em forma da compreensão de que também ele está sujeito a errar. Às vezes, é possível aprender com ele. Em dias de improváveis surpresas, pode ser que o insano também aprenda com você.
A chuva, o frio, o café de daqui a pouco. Está anoitecendo e tenho de levar o lixo para fora, mas estou negociando comigo mesma: por que não amanhã? Deixa pra amanhã!
Penso nas vezes em que me perguntei: por que não deixar para amanhã? E então, sorri, achando-me danadamente sábia, decidida a não sair do apartamento. Não saí e não teve amanhã para dizer o queria, para ser quem poderia me tornar, para conquistar o que era possível, para declarar meus desejos e apreciação, encarar desafios necessários, aprender um pouco mais sobre mim e sobre os que me interessam.
Por que insistimos em nos orientar pela falsa sensação de que temos todo o tempo do mundo?
Não temos.
No cenário atual, ir até ali, para lidar com o essencial, é como dar uma volta pelo quarteirão. É saber que ainda existe calçada, rua, semáforo, gente. Que o sapato ainda cabe nos pés, que você sente falta do mundo sem atualizações dramáticas sobre quantas pessoas deixaram de existir, porque muitos confundiram festas com item essencial, ou porque simplesmente foram incapazes de pensar no outro. É não saber quanto tempo a vista da janela será a mesma, porque pouco tem sido consistente, nos últimos meses.
Ao levar o lixo para fora, podemos nos redescobrir nesse novo tempo, em muitos aspectos: financeiro, emocional, social. Aprendermos, de vez, que respirar é preciso, mesmo que uns e outros não pensem da mesma forma, apesar de este ser um daqueles fatos que são fatos de fato, e de os próprios cogitarem a possibilidade para todos os outros, exceto para eles mesmos.
Quem negaria a eles os pulmões em pleno funcionamento?
Respire.
Já sugeri isso em algum outro texto [clique aqui para ler]. Havia mais poesia nele, mas não se engane, porque não havia mais leveza. Porque respirar, sendo imprescindível, vem com uma lista de afazeres e favores que devemos prestar à realidade, ela que também serve a uma variedade de falhas: de comunicação, na manutenção, de caráter...
Então, que melhor é que eu me sirva do hoje e das tarefas rotineiras que o preenchem com reflexões que dizem nada que já não tenha sido dito. De inédito, um feito. Precisarei dos pulmões para realizá-lo.
Desço as escadas do prédio, saco de lixo na mão.
Respiro.
Imagem © Aninha Apolinário, divulgação do livro Estopim (sic/2012)
Comentários
velhos hábitos ...te ler e te sentir o gosto do mais profundo
coisas imutáveis...ninguém é responsável
Beleza de texto!
Branco, a vida anda mais misteriosa do que nunca, não? Ainda que escancarada, parece que, às vezes, enxergar é meio que um superpoder que não temos. Beijos!
Zoraya, obrigada pelo adjetivo. 😊 Beijos!
Albir, você resumiu tudo em uma frase. Obrigada! Beijos!