FUGA >> Carla Dias >>
Mora ali, naquele canto. Às vezes, sai para um passeio pelo por aí, mas sempre volta. Dizem que sabe nada sobre aventurar-se. Porém, sai por aí, vez em quando, mas sempre volta.
Sempre volta.
Mora ali, nas indecisões. Não raro, pega-se a vasculhar possibilidades: e se? E se? E se?
E se?
Então, cala os questionamentos e se encolhe no seu ali. Não há lugar que conheça melhor do que aquele, onde é capaz de acalmar seus barulhos internos e ser livremente...
Quem?
Dia desses, observou uma mãe abraçar seu recém-nascido, como se o protegesse do tudo de ruim. Percebeu que aquele era o ali daquela criança, que resmungou e, em seguida, sorriu. E também um moleque faceiro que, depois de muito tempo a brincar com seu cachorro, sentou-se no chão, exausto, e o bicho se ajeitou aos pés dele, exausto. Ali era o ali daquele ser. O ali no qual ele se sentia seguro para curar exaustão.
Mora ali, onde os olhares nem sempre alcançam ou as palavras ecoam. Há vazio de monte naquele ali. Há silêncio a se perder de vista naquele ali. Ainda assim, constrói-se, diariamente, naquele lugar ao qual pertence. Não pertence a ele por imposição, cultura, falta de espaço outro. Pertence a ele com o pertencimento eriçado pela liberdade.
Às vezes, sente desejo de sair do ali e se descobrir em outro pertencimento.
Chegou a pensar que tal desejo era dos reprováveis, até compreender que, na verdade, ele era dos necessários. Como saber do valor sem questioná-lo, sem questionar-se ao abarcá-lo?
Há nesse desejo um tom insinuante de medo reverberante. Teme, em segredo escancarado, perder-se de si ao se mudar do ali, onde mora, existe, recosta-se e observa o tempo e o roteiro que ele cria para tantos.
Que identidade teria se partisse para outro lugar?
Talvez nunca seja capaz de fazer tal viagem e permaneça ali, a cultivar lembranças alicerçadas no que... quem poderia ter sido. Imaginou-se protagonista em histórias fantásticas e também naquelas em que o simples predominava. Imaginou-se mais, além, tão adiante. Porém, feito aquele cachorro de menino faceiro, sempre volta para os pés de quem é, aconchega-se no seu ali para recuperar-se da exaustão de tentar essa fuga.
Há dias em que a fuga mora em sorrisos alheios, diverte-se com a vida do outro e suas realizações. Há dias em que ela se esbalda em saudades indefinidas, mágoas indeterminadas, futilidades emocionais. Há quando a fuga é tão de si para si, que ensimesmar-se é a única alternativa.
Ensimesmar-se nesse mar de ser quem seria se.
E há dias como o de hoje, em que a fuga é uma canção das mais que preferidas, cantaroladas em um desafinar intrigante, enquanto se recosta no seu ali, onde mora desde antes de compreender prisões e as máscaras que elas oferecem aos seus habitantes.
Obra: Grazziela © Jules-Joseph LefebvreImagem © Metropolitan Museum of Arts
carladias.com
talhe.blogspot.com
Comentários