A VIDA É LONGA >> Whisner Fraga

Ainda está noite e ele se levanta até o banheiro, onde começa o dia.

Já anda pela cozinha, enquanto espera a água ferver. Gosta de café forte. Enche a garrafa térmica e sai para a padaria.

A rua começa a coleta de gente.

Um amigo está de chinelo e pijama e ninguém se importa. Comentam sobre o calor, sobre o jogo do Palmeiras e sobre o quão bons eram aqueles tempos. Depois se despedem.

No caminho cruza com o bar abandonado do Seu Joaquim. As paredes enfeitadas com pichações e outros anúncios de amor e de desprezo, o lodo herdando os rebocos umedecidos, o capim sequestrando o balcão vazio, as portas de aço salpicadas de ferrugem.

Em casa, tira a margarina da geladeira e, com a faca, unta o miolo do pão. O café já não está mais fresco. Prefere assim. Quase amanhece.

Vai para o quintal molhar as plantas. Observa alguns caramujos prontos para o ataque. Apressa-se em buscar o sal. Borrifa o pó na cabaça dos bichos e espera para ver as minúsculas antenas se derreterem diante do assombro invisível e sem testemunhas.

O sol endurece a manhã quando retorna para a cama. Fecha a janela, se espicha no desalinho do lençol. Mais tarde se assusta com o próprio cochilo e descobre que é hora de preparar o almoço.

Põe o arroz para secar e separa uns ovos e um bife. A cenoura, o quiabo e a couve estão temperados. Não se importa com a falta do feijão.

Come devagar, mastigando os sabores entremeados nos venenos dos alimentos.

Lava os talheres, as panelas, as vasilhas. Leva os restos do almoço para o gato, que ronda há horas a piedade do dono.

Faz a sesta.

Novamente o susto por um sono fora de hora e se esgueira até a mercearia. Escolhe uns enlatados. Recolhe algumas informações sem importância e se senta um pouco no sopé da tarde embrutecida. Despede-se.

Vasculha a horta, elimina outros caramujos e retorna para a sala. Empunha o prato em frente à TV. Arroz, ovo, alface e milho. Aumenta o volume e se dirige para a pia. Lava os talheres, as panelas, as vasilhas. Leva os restos da janta para o gato. Faz o quilo.

Aborta a fala da atriz renomada. Caminha até o quarto, fecha a janela, se espicha no desalinho do lençol. E dorme.

Comentários

Carla Dias disse…
Fiquei entre o deslumbramento pela eficiência de uma rotina ao preencher tempo e a falta de algo que a desarrume toda. E ainda me senti assistindo um filme. Uma experiência e tanto essa leitura me proporcionou. Obrigada!
Zoraya Cesar disse…
Que relato esplêndido, Whisner, sobre uma rotina repleta de nada! Simplesmente amei a descrição do bar abandonado do Seu Joaquim. Reli nao sei qtas vezes. Como fez a Carla, agradeço.

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