FALTA MANCHETE SOBRE ESSE TEMA >> Ana Raja

Imagem de Mystic Art Design por Pixabay

Não à toa, recebi o prêmio de melhor jornalista do ano. Ainda assim, até o último instante, eu tive dúvida de que a minha reportagem investigativa seria a escolhida. Sabe como é... não há espaço para a divulgação dos métodos de tráfico de pessoas nas manchetes dos veículos de comunicação. 

Foram anos de estudos, especializações e metade de uma vida respirando o jornalismo. Meu casamento não durou dois anos. Também, quem aguentaria uma pessoa obcecada como eu? Casei mesmo pelo meu pai, que tinha medo de morrer e não me ver inserida na base mais segura que uma mulher pode ter. Para ele não ficar revirando no caixão, casei. Ele tinha a saúde frágil e achei que o sacrifício terminaria logo. Dito e feito. Meu casamento durou só dois anos. Filhos, não tive tempo de tê-los. 

Segui o meu caminho. O editor do jornal me chamou para uma reunião e disse que eu faria a melhor matéria da minha vida, a mais perigosa também.  Fiquei radiante. Enfim, um tema de fato complexo. 

Naquela manhã, recebi todas as orientações e o roteiro  - como de um filme - foi traçado. A minha vida se transformou. Troquei de nome para não levantar suspeita. Durante seis meses frequentei a academia para que as curvas do meu corpo mudassem, não que eu precisasse . Estudei sobre o assunto, conheci a maneira como os jovens eram cooptados. Na parede do meu quarto, fiz uma pirâmide com o grau de importância de todos os envolvidos. Estudei cada um, detalhadamente, garantindo que saberia o que fazer ao lidar com eles.

Faltava a última mudança e estaria pronta. No salão fiz um mega hair castanho escuro. Na mala, as roupas repaginadas. O meu incômodo era ter de usar salto alto; nossa, como sofri! Tudo eu tirei de letra, mas o salto quase acabou comigo. Parti em um voo até a capital e de lá peguei um ônibus para Brilhantina com a missão de desvendar o esquema mais rentável dos últimos tempos. Fiquei uns dez dias hospedada em uma pensão, perambulando pela cidade, no intuito de ficar conhecida e arrumar um emprego na Luz da Lua. 

A dona da pensão me conseguiu uma entrevista com o gerente da boate. Ele insinuou que eu já tinha passado do ponto “pra tá deitando com estranho”. Me lembro que respirei pausadamente e respondi que era boa com os números, que poderia começar no caixa, ajudar no bar e depois, se ele gostasse do meu trabalho, ajudaria na contabilidade do lugar. Me perguntou mais algumas coisas, ficou com os meus documentos e disse para que eu aguardasse na pensão, que logo daria notícias. 

Depois de contratada, passei um ano e meio trabalhando na Luz da Lua. 

O gerente foi gostando do meu trabalho. No começo ficava de canto, me perseguindo, todo desconfiado. Eu tive muita cautela e sangue frio. Logo consegui entender o que acontecia ali dentro. A circulação de pessoas na boate era muita grande; as moças e os rapazes que chegavam para trabalhar vinham de todos os estados. 

Uma vez por mês, Salvador chegava na cidade para escolher os melhores exemplares de peças humanas, os destinados a trilhar o caminho da fama. Era uma alegria para aqueles jovens cheios de sonhos. Os selecionados desfilavam em uma passarela montada no meio do salão da boate, e se fossem bons dançarinos, tivessem dentes brancos, carne dura e uma certa timidez, a aprovação estava garantida. Porém, como por encanto, desapareciam da Luz da Lua, após a seleção. Eu não conseguia ter acesso ao que houve com eles depois dessa escolha. Uma van encostava de madrugada na porta da boate, os jovens entravam e se acomodavam nos bancos. Salvador fechava a porta e nunca mais ninguém ouvia falar sobre aquelas pessoas. 

Eu estava perto de acessar todo o esquema, mas faltava essa linha solta. O que eu havia conseguido não provava nada. Andei muito por Brilhantina pensando sobre como conseguir um desfecho para essa história. Passava horas na beira do rio me refrescando. Boiava na água transparente e o eco no meu ouvido me deixava leve para raciocinar. Numa tarde, na volta de uns desses passeios, dei de cara com o gerente me esperando em meu quarto. Levei um susto. Não sabia o que ele queria, se a mim ou se havia descoberto quem eu era. Para minha sorte, nenhuma das duas coisas. Acendeu um cigarro, abriu a janela do quarto, sentou na beirada da cama, reclamou do calor, abriu uns botões da camisa e disse que eu seria promovida. Me parabenizou pelo trabalho digno que prestava para aquele estabelecimento e pela minha inteligência com os números. 

Então, se assumindo testemunha, recebendo o benefício da delação premiada, abriu a boca e não a fechou até contar que a minha passagem para o México estava marcada, e que eu acompanharia a entrega da próxima carga. 


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anaraja.com.br

Comentários

Marlene Rodrigues disse…
Sensacional! Um final aberto, não creio Ana. Fiquei com gostinho de quero mais. Além disso, com sensibilidade relatar um assunto que muitos fecham os olhos e fingem que não existe.
Zoraya Cesar disse…
Muito bom, Ana, uma história de filme, um roteiro!
Carla Dias disse…
Ana investigativa. :)
Muito bom!

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