ACASOS MOVIMENTANDO A VIDA, E AS CRÔNICAS >> Sergio Geia

 


A manhã era tão clara, que quando a vi, não tive dúvidas: era a sombra de uma quaresmeira; descansei. 

Não. Certamente, quaresmeira, não. Mentiroso? Deu pra mentir?, me perguntei. Exatamente o contrário, respondi, pois não estou aqui a falar a verdade? É que gosto tanto da palavra “quaresmeira”, acho tão leve e bonita, que me convenci disso: estava debaixo de uma quaresmeira. Se não a convenço, me perdoe, amiga leitora; você também, rapaz que me lê: perdão. 

Havia silêncio, o silêncio que abranda a alma. Você ouve pássaros, a brisa a remexer os galhos, latidos ao longe, miados, ouve até passos de alguém que vem; ou não. Às vezes, o silêncio é tanto, que é possível ouvir o coração. Na hora, lembrei-me do quadro de avisos do Ponto de Luz Cristalina: “O silêncio, além de ser uma oração, traz calma pra alma”. Orando, acalmei, e estava bom. 

Então percebi naquele silêncio um ponto de luz de crônica a surgir distante, pelo menos assim eu queria. Respirei fundo e tentei elaborar: “Ivan, o amigo do prédio que trabalha na portaria, pediu a João roupas para doação”; gostaria de começar assim. 

Refleti. Tenho o hábito de a cada peça comprada, separar uma para doação. Acontece que não compro nada há anos! Primeiro, por causa da pandemia, que nos trancou em casa. Depois, a vida voltando ao normal, não consegui encontrar paciência para sair às compras. As camisas, por exemplo, estão tão velhas. Sapatos, calças, estou em dívida com o meu guarda-roupa, e com seu Ivan. Mas com ele, não, pensei. No dia seguinte ao recebimento do recado de João, abri a gaveta e separei coisas para a doação. 

Ainda debaixo da “quaresmeira”, com aspas mesmo e você entende a razão, ouvi uma mulher conversando com o varredor de rua. Estava indignada, o abandono da Vila Santo Aleixo, ela dizia. Entra prefeito, sai prefeito, o lugar aos bichos, quase caindo, ninguém faz nada, será tão difícil não virar as costas para a história? Vila Santo Aleixo, e a imagem de muros pichados, de janelas escancaradas e carcomidas, a madeira corroída, turvou-me a visão; bateu uma tristeza vaga. 

No caminho de casa encontrei um sujeito ao telefone, falava alto, grosseiramente. Quando passou por mim, elevou o tom, as palavras tão ressentidas:

— Eu te amei por 30 anos e você não quis. Agora, azar o seu! 

Sem querer arregalei meus olhos; por sorte, o homem que amou por 30 anos sem ser correspondido já ia pelas costas. Ele continuava a falar com ímpeto, na certa lamentando o amor que não existe mais. Ou então tentando ser duro, mostrando um pouco de desinteresse para ver se consegue despertar o interesse de quem estava do outro lado da linha, algo de que honestamente, eu duvidava. 

Ao chegar ao prédio encontrei Miragaia entrando num automóvel. Lembrei que no dia da votação, no fim de outubro, eu cruzei com ele no hall. Ele me perguntou se eu havia votado. Disse que sim, que já havia apertado o 13, tateando qual seria a sua reação, pois desconhecia suas preferências políticas. Ele me respondeu com alegria: 

— Pois aperto o 13 há mais de 30 anos — eu sorri. 

Foram esses pequenos encontros que a pandemia nos roubou, pensei, ao apertar o 4 no elevador. Para um cronista a coisa é pior. Como escrever crônicas se a matéria-prima de sua inspiração está nas ruas, no acaso que movimenta a vida, no abelhudo que tudo ouve, tudo vê e tudo fala? Tão igual aos macaquinhos místicos japoneses, só que ao contrário. 


 Ilustração: Pixabay

Comentários

Carla Dias disse…
Sergio, ainda bem que o mundo tem um observador da vida cronista feito você. ainda bem que os leitores têm essa sorte. Além disso, "quaresmeira" também é palavra que me agrada profundamente. Obrigada por essa crônica.
sergio geia disse…
Carla, Carlinha, pois é, essas crônicas que nascem do contato com as pessoas são deliciosas. E você não tem ideia como rendeu essa história de quaresmeira, na próxima eu conto. Beijo!
Darci Siqueira disse…
Simplesmente sensacional, acabei de ler as duas, para entender bem a crônica atual. Apelidou sua alvore sombrinha e ganhou gigantesca atenção em suas duas crônicas, kkkkk, Parabéns.
sergio geia disse…
Valeu, meu amigo Darci! Forte abraço!

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