UM BREVE ADEUS – uma aventura de Marta Atanasiou – espiã e assassina - 2a parte >> Zoraya Cesar - setembro 03, 2021
A mulher era pequena e magra. Uma aparência frágil que já fizera muitos desavisados pagarem com a vida sua ingenuidade. Por alguns segundos o bar ficou em silêncio. Respirações suspensas, gestos parados no meio do ar: "ela" chegara. Marta Atanasiou, uma lenda da espionagem e das mortes perfeitas. Um dos raros agentes, como o homem que entrara antes dela, que conseguira se aposentar.
Vestia-se de preto e de Chanel, da cabeça aos pés, incluindo a bolsa, na qual trazia sua pistola preferida, a Glock G21, adaptada para canhotos. O elegante corte nos cabelos inteiramente brancos – excetuando uma única mecha preta na franja - deixava à mostra seu pescoço branco, fino como uma palmeira. Intenso brilho luzia por trás das lentes dos óculos de aros azuis. Portava uma bengala de cedro do Líbano, que ocultava uma lâmina forjada pela mais tradicional cutelaria de Toledo. Aquela arma já matara mais gente do que nossa vã imaginação gostaria de pensar.
Se a velhice não abatera sua saúde ou ânimo, ainda assim o tempo e a vida deixaram seu legado no corpo de Marta Atanasiou. Os joelhos não a deixavam mais escalar montanhas e sua agilidade não acompanhava seus reflexos. Mas ainda era mortífera e cruel. Alguém para ser temido. Alguém para não cruzar nosso caminho.
Seu antigo adversário levantou-se cortesmente e afastou a cadeira. Ela sentou, pronta para sacar a lâmina ao menor sinal de perigo. Ao perscrutar os olhos do homem, no entanto, relaxou. Não sabia bem por quê, mas confiou no seu instinto.
- Você está fantástica, Marta! Agradeço ter aceito meu convite.
Ela fez apenas um meneio gentil com a cabeça, a grande dama que era.
Ouzo e bourbon brindaram. Beberam silenciosamente, apreciando a bebida, percebendo e degustando o momento especial.
Ao terminarem a primeira dose, ele entrou abruptamente no assunto. Tempo era um luxo que não o favorecia.
- Estou morrendo. É incurável e relativamente lento para a minha ansiedade. Mas os primeiros sinais de senilidade já apareceram e os médicos dizem que vai se agravar rapidamente. - A voz dele não tremeu, os olhos não mostraram emoção. Um homem do início ao fim.
- Durante muitos anos tentamos nos matar. Mas éramos bons demais. Agradeço a qualquer deidade que porventura exista por não ter tido êxito. Porque preciso de um favor.
Nascida e criada nas montanhas gregas, aprendera a lutar e a sobreviver com montanheses robustos e impiedosos. Homens de têmpera e honra, como o homem que estava à sua frente. Respeitava homens assim. Só não esperava que o assunto fosse trazido à mesa de maneira tão direta. Fitou longamente um quadro de Monet (verdadeiro, sendo um dos sócios do bar traficante internacional de obras de arte). Sempre gostara de Monet. Dava-lhe uma sensação de algo além da vida. Sabia o que o antigo inimigo iria pedir.
- Não quero acabar numa cama de hospital, cheio de morfina, dependendo de estranhos, sem lembrar nada da vida maravilhosa que tive. Acho o suicídio algo ignóbil. Marta Atanasiou, você me daria a honra de me matar?
Ela não demonstrou qualquer sentimento. Perguntou, apenas:
- Caso aceite, como você quer que eu faça?
Ele baixou ainda mais a voz.
- Como você achar que eu mereço.
Marta Atanasiou abriu a bolsa, mas em vez da Glock, tirou antiquados papel e caneta. Escreveu algumas linhas e entregou o bilhete para o homem Despediu-se e partiu.
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Sentados à beira mar, em uma praia particular de um balneário isolado, Marta Atanasiou e o homem esperavam o ocaso do dia, conversando sobre os velhos e os novos tempos, as aventuras, os arrependimentos, as cicatrizes e as alegrias da profissão. Conversavam também sobre música, cinema, literatura. Para ambos, há muito não passavam momentos tão agradáveis e serenos.
À sua frente, uma mesa com chá, ouzo, bourbon, alguns petiscos. E um pôr do sol que prometia ser incrivelmente belo.
Esse ritual se repetia diariamente já havia mais de uma semana.
O homem olhava a paisagem, saboreando o bourbon, e, de repente, sentiu-se feliz. Não sabia quando sua antiga rival cumpriria a promessa, mas sabia que nunca vira um pôr do sol tão lindo. O mar azul cobalto quebrando na praia fazia um som quase hipnótico. Uma brisa sacudiu a toalha da mesa e formou pequenos redemoinhos de areia. Para ele, vindo de um país de ventos fortes e gelados, o frescor da tarde despertou boas lembranças.
Sentia sono. Queria muito dormir. Mas tudo estava tão lindo e agradável…
Marta Atanasiou tomou as providências necessárias, e espalhou as cinzas de seu ex-adversário no mar, ao nascer do sol.
Voltou à sua terra natal. Sentia saudades de seus mistérios, sua selvageria, sua força ancestral telúrica. Estava velha. Temeu morrer longe do lugar que tanto amava. Ficaria ali por um bom tempo.
Lembrou de sua outra única missão de misericórdia. Achilleus Daskalakis. Quem primeiro a ensinara a sobreviver num mundo hostil às mulheres. Seu primeiro homem. Encontrara-o ferido e abandonado nas montanhas. Ele pediu que não o deixasse morrer vergonhosamente em mãos inimigas.
E agora, no final de sua vida, matara outro homem a quem respeitava, também por misericórdia.
Olhando para o monte Olimpo, agradeceu aos deuses por essa dádiva.
Outras aventuras de Marta Atanasiou
Um estranho café - ninguém estranhou quando uma velha senhora entrou, em plena madrugada, em um bar frequentado apenas por elementos altamente suspeitos.
No clube dos proscritos - parte 1 - se ele cumprisse sua missão, seria um herói. Se não, seria um cadáver.
No clube dos proscritos - parte 2 - às vezes, para um viver o outro tem de morrer. E, antes que eu me esqueça, a soberba não é um pecado capital à toa.
A hora do chá - A hora do chá é sagrada. Cuidado para não pegar a xícara errada.
Um breve adeus - parte um - um bar escondido do mundo normal esconde muitos segredos. E histórias estranhas
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Imagens
Ouzo
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Attribution:MOs810, CC BY-SA 4.0 <https://creativecommons.org/licenses/by-sa/4.0>, via Wikimedia Commons
Monte Olimpo
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File URL:https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/c/c9/Mount_Olympus%2C_Greece.png
Attribution: Cristo Vlahos, CC BY-SA 3.0 <https://creativecommons.org/licenses/by-sa/3.0>, via Wikimedia Commons
Comentários
Você só não surpreende em um único aspecto: sua capacidade de produzir surpresas é uma certeza.
Passando à parte cretina dos meus comentários:
1 - creio que seu senso de proporção precisa ser revisto. Um pescoço que tenha a espessura de uma palmeira pode ser qualquer coisa, menos fino;
2 - sugiro que a protagonista mude seu nome para Marta Eutanasiou. Vai favorecer o marketing, e ela vai enriquecer rápida e merecidamente. Eu mesmo vou pedir que você divulgue o contato dela. Pode ser útil.
seu conto narrado de uma forma excepcional me maravilha.
e cá estou..maravilhado.
Lord White - que eu continue a te oferecer crepúsculos que mereçam suas palavras!
Ana - sim, dignidade, obrigada! era essa a intenção.
Erica - pois é, vc achou esse conto fofo, acho q estou te contaminando hahaha. Eu não me preocuparia com a Marta. Ela vai morrer com honra e dignidade, isso eu prometo. Ela também.
Albir - Dom Albir! Marta é uma mulher especialíssima, one of a kind. Mas eu gosto muito de você, e, assim como ao Márcio, eu não vou apresentá-la a vcs. Perigoso, muito perigoso. E obrigada por ver a ética dos meus assassinos. Nhoim!
Nádia - Countess, elogio seu, que deu a minha alcunha, é sempre uma alegria! Amei q todos tenham visto a dignidade daqueles dois, assassinos e espiões que fossem.
A todos, muito obrigada pela leitura e comentários!