A MENINA E O GIRASSOL >>> Nádia Coldebella

Um dia a menina resolveu que já podia amar. Tinha o coração puro, o espírito livre e um amor como o seu muitos iriam querer - isso era óbvio para todos, mas não para ela, que agora decidiu passear por campos floridos que desconhecia. Arrumou a pequena mochila dos seus tempos de criança com as coisas necessárias para a pequena viagem. Saiu de casa cheia de expectativa e temor, coração batendo forte e descompassado. 

Logo seu coração amainou-se diante da beleza do campo. Flores de todos os tipos, cores e tamanhos lhe lançavam seu perfume e demoravam-se em performances estudadas, na tentativa de atrair seu olhar. Embora lindas, as flores não lhe falavam ao coração, pois estavam mais interessadas na própria aparência:


- Oh, menina... - dizia uma rosa mirando seu reflexo numa pequena poça de água - Veja como sou bela! 


- E sinta o meu perfume! - dizia uma orquídea, covardemente agarrada ao tronco de uma árvore – Eu permito que você sinta, mas poucos terão este prazer.


- Olhe para mim! – gritava nervosa uma glicínia. - Você jamais verá cores como as minhas!


A menina, gentilmente, deu atenção a todas as rogativas e apesar do egoísmo e grosseria das flores, não deixou de apreciá-las e admirá-las, espantada com a perfeição criada pelas mãos de Deus. Mas logo ficou farta dos apelos mesquinhos das flores. Sentou-se sob a sombra de um frondoso ipê branco, abriu sua mochilinha e tomou um pouco de água. Sentindo fome, lembrou-se da maçã que havia trazido e pôs-se a comê-la. Enquanto mastigava, olhou até onde seus olhos conseguiam ver e, não muito distante de onde estava, vislumbrou um girassol. 


A menina guardou a maçã e a água dentro da mochila e seguiu na direção da flor. Enquanto caminhava, notou que ele não olhava para o sol, mas mantinha a cabeça baixa. Ciente de sua presença, ele olhou-a em silenciosa expectativa. A menina sentou-se ao seu lado e o girassol, alvoroçado, pôs-se a declamar, melodramaticamente, um pequeno poema que os girassóis costumam declamar ao sol.


O poeminha aqueceu o coração da menina, como uma chama aquece uma criança numa noite fria. E daquele momento em diante, ela passou a amá-lo com toda a dedicação que sua alma livre e pura poderia permitir. O girassol a olhava admirado enquanto ela o olhava enternecida:


- Pensei que nunca te encontraria, bela flor.



arte: Van Gog

Percebeu que ervas daninhas cresciam no entorno da flor e arrancou-as, uma a uma, até suas mãos ficarem feridas. Afofou-lhe a terra e, mesmo estando com sede, regou-o com o resto da água que havia trazido para beber.


- Agora preciso ir, querida flor. Já escurece e o campo, a noite, não é um bom lugar para meninas. Voltarei amanhã para ficar contigo. - E, despedindo-se, seguiu radiante pelo caminho de volta.


No dia seguinte, a menina retornou. Ignorando o chamado vaidoso das flores, não se desviou nem se distraiu. Caminhou até o girassol, levando água e adubo para a terra. Ervas daninhas haviam tornado a crescer. A menina arrancou-as até ferir as mãos, mas não se inquietou com a dor que sentiu. Em seguida, começou a revolver profundamente a terra ao redor do girassol e encontrou pedras cravadas no solo de tal modo que precisavam ser removidas para que o adubo fosse aplicado à terra. Pacientemente, iniciou a colheita das pedras, ferindo ainda mais as mãos. De face voltada ao solo, não observou o olhar arrogante do girassol para as outras flores. Ao fim do dia, ela havia arrancado todas as pedras e adubado o solo. Algumas  ervas daninhas, porém, insistentemente voltavam a crescer e ela precisou arrancá-las novamente. A noite estava chegando, ela acariciou a planta, recolheu suas coisas e pôs-se a caminho de casa.


Nos dias que se seguiram, a menina aparecia bem cedo e dirigia-se ao girassol, ignorando, sempre, a súplica lamurienta das flores. Ela não feria mais as mãos, pois levava consigo os instrumentos necessários para o trabalho de jardinagem. Diligentemente arrancava as ervas daninhas que cresciam cada vez mais fortes e em maior número, afofava a terra, regava a planta, contava-lhe histórias e ouvia suas lamentações sobre a incômoda beleza de outras flores. O girassol crescia e ela sabia que nada poderia esperar dele, até que todo o ciclo do seu crescimento se completasse. E mesmo assim, estava disposta a aceitar o que ele poderia dar, sem nada exigir. Ele se sentia mais forte, mais senhor de si. Havia levantado a cabeça e não olhava mais as flores, olhava sobre elas. 


Na primavera, a menina avistou duas pequeninas plantas que cresciam juntas ao girassol. Primeiro imaginou que fossem ervas daninhas, mas não eram parecidas com nenhuma que já havia visto. Aos poucos, compreendeu que eram dois pequenos girassoizinhos. A menina passou a ter cuidado redobrado com o solo e nem percebia o quanto o girassol estava exasperado. As novas plantinhas eram, para a menina, sinais do seu amor e devotamento ao girassol e amá-las-ia como amava o girassol. Recolheu-as do solo e plantou-as em pequenos vasos. Levou-as até sua casa e replantou-as na frente da janela do seu quarto.


E então, passou a dividir seu tempo em duas partes iguais, uma em que se dedicava  ardorosamente ao girassol e outra em que se devotava as pequenas plantinhas. Enquanto trabalhava incansavelmente pelo girassol, via-o sempre cercado de ervas daninhas. Pensou em removê-lo do solo e levá-lo até sua janela, mas não poderia privá-lo da visão maravilhosa do campo com a qual estava tão acostumado. Os girassoizinhos, por sua vez, cresciam sem esforço, cheios de vitalidade e beleza. A noite, recolhiam-se num sono regenerador e durante o dia acompanhavam, em regozijo, o astro-rei no céu. E assim o tempo passou, sem descanso para a menina, que aos poucos e sem perceber, se tornava mulher. 


Certa noite, houve grande tempestade, com raios, trovões e pedras. O coração da menina quase saiu do peito, tamanho o medo de perder seus girassóis. Quando a tempestade acalmou, viu que seus girassoizinhos estavam bem, protegidos pelas copas das árvores que rodeavam a casa. Antes mesmo de amanhecer, correu em direção ao campo para ver seu amado girassol. Lá estava ele, com as pétalas marcadas pelas pedras, mas nada quebrado. No entanto, ele estava profundamente zangado e gritou assim que viu a menina:


- Você me deixou sozinho...


- Mas eu fiz o que sempre faço! Cuidei de você o dia todo e voltei para casa...


- Você não me ama de verdade! Você me trocou por aquelas plantas! – gritou o girassol enfurecido.


- Querida flor – falou a menina com meiguice, tentando abrandar a cólera – vou cuidar de você até que se sinta melhor.


O girassol olhou-a com um desprezo que ela nunca havia conhecido. Em seguida, de forma fria e calculada, disse:


- Você nunca deveria ter vindo. Não ouse me tocar.


A menina, profundamente ferida, deitou-se na relva verde, ao lado de alguns miosótis, e chorou convulsivamente. As singelas florzinhas, que quase nunca falavam, abraçaram a menina e com ela ficaram, até os primeiros raios de sol.


Então, a menina levantou-se e olhou para o girassol. As ervas daninhas haviam crescido assustadoramente a sua volta, muito além do costume. E o girassol não era o mesmo. Estava grande e forte, mas de forma grosseira e assustadora. Sua cor também havia mudado. As lindas pétalas amarelas tinham dado lugar a pétalas amarronzadas. O caule e as folhas, sempre num verde exuberante, estavam apagados, quase ressequidos. E ele olhava para todas as flores e para a menina com um olhar repleto de ódio e soberba.


Uma brisa suave passou pelo campo. Aos poucos, a brisa tornou-se vento e de vento, ventania forte. As flores se agarravam ao solo, resistindo bravamente. A ventania piorou e algumas flores perderam as pétalas. E o vento tornou-se forte a tal ponto que a menina precisou abraçar o tronco de um salgueiro chorão, já bastante abalado pela tempestade da outra noite. Sem tirar os olhos do girassol, viu que ele perdia as pétalas e, depois, seu caule e suas folhas caiam, como cascas caem de árvores.


Apavorada, a menina percebeu que a flor, que tanto amara, era uma terrível erva daninha sob a vestimenta de um belo girassol. Ela nutrira e amara profundamente uma destruidora erva daninha. 


Passado o vento, a planta olhou para ela, com o seu olhar de erva-daninha, e começou a rir, histericamente. A menina, tremendo inteira, abaixou a cabeça em grande consternação:


- Como não percebi? 


Num estado que variava entre a realidade e o sonho, ela tomou o caminho de casa. Ao chegar, olhou seus amados girassoizinhos e preocupou-se:


- Seriam eles girassóis de verdade?


Ela viu que os pequeninos fitavam alegremente o sol e entendeu, então, que a planta que nutrira e amara não olhava para o sol porque sua alma negra não suportava a luz. Mas, mesmo em meio às pedras e as ervas daninhas que o cercavam, seu amor e dedicação produziram frutos bons.


A menina deitou em sua cama e dormiu por dias. Estava exausta. Sua pequena aventura havia se tornado uma grande viagem. Quando acordou, viu que seus girassoizinhos estavam crescendo fortes e felizes e que a terra ao seu redor era boa. 


Ao pensar no antigo girassol, uma vaga lembrança do que acontecera, desprovida de qualquer afeto ou significado, passou pelos seus pensamentos. Olhou para o céu com esperança e sorriu quando um pássaro lhe disse que o amor ainda iria encontrá-la.






Comentários

branco disse…
jovem senhora. as linhas e entrelinhas são de pura inspiração , magia e realidade. que um carinho amigo chegue até você.
Mauro Fregolon disse…
Os bons frutos do amor, saboreiam a si mesmos, quando são criados na pureza e na obediência ao Criador.
Leitura inspiradora.
Paulo Barguil disse…
Nádia, que história linda! Com tons, cheiros e emoções variadas. Obrigado.
Zoraya Cesar disse…
Countess Velvet em seu esplendor! Uma história veludosa, cheia de significados e belamente narrada. E ainda por cima esperançosa. Linda demais.
Albir disse…
Linda a sua história, Condessa, com todas as leituras.

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