UM DIA DE NÃO >> Albir José Inácio da Silva
Um dia
ele amanheceu sem dores, e a mulher não reclamou de nada. Os filhos não pediram
dinheiro nem brigaram antes de sair pra escola. Não recebeu nenhum telefonema
de cobrança e, diga-se, o telefone nem estava cortado. Não viu o jogo ontem -
nem sabe o porquê - mas seu time não perdeu, ou o vizinho já o estaria
sacaneando aos berros.
Naquele dia também não teve que sair de madrugada com recortes de empregos para
ouvir nãos e voltar com tristeza, cansaço e fome. Não o fizeram acreditar que
era um fracassado, e uma espécie de conselho de família e amigos, embora
reunido, não concluiu que ele era imprestável e preguiçoso. Passaram apressados
e olharam como se, pela primeira vez, se preocupassem com sua doença.
Depois de muitos anos não ficou triste ao acordar, não teve vontade de se
matar, não rezou sem fé, nem se arrependeu de nada. Bastava! Não ia mais aturar
desaforos. Quem pensam que são? Como diz Pessoa em linha reta, estão sempre
campeões em tudo? São semideuses? Só ele é vil? Não era perfeito, mas quem ali
podia se considerar melhor que ele? Queriam mantê-lo assim, precisavam de sua
humilhação, os abutres. Que fossem procurar outra carniça!
Ele não tossia, não engasgava nem fazia caretas pra respirar. Não precisou se
arrastar até o ambulatório e esperar sentado no chão. Aquela vizinha enfermeira
de mão pesada não apareceu com seringas e agulhas cada vez maiores e, apesar
das marcas de ontem nos braços, não houve tortura naquele dia.
Num dia assim tranquilo não havia motivos para atrasos, e seu enterro saiu
pontualmente às quinze horas.
Esse texto faz parte do
PROJETO CRÔNICA DE UM ONTEM e foi publicado originalmente em 07 de fevereiro de
2011.
Comentários
gostaria de ter escrito essa.