SOMOS >> Carla Dias
Tira um maço de cigarros do bolso do paletó. Insiste na repetição mental da frase mágica que o tem salvado de quebrar promessa: mais um dia sem fumar. Anda com o maço de cigarros no bolso, porque precisa ser lembrado do que deve esquecer em nome da saúde (pigarreia ao devolvê-lo ao bolso) e da promessa que fez a quem não vem ao caso, por conta do que não interessa.
É apenas um homem que precisa trabalhar arduamente para pagar promessa e plano de saúde.
Sou um feixe de luz amparando dolências
que amargam olhares, transfiguram semblantes?
Para ela não é problema encontrar-se com a solidão no começo da noite, depois do expediente, nem mesmo nos fins de semana, enquanto os barulhos da rotina incluem o programa de auditório no último volume vindo da televisão da vizinha quase surda.
Apropriou-se da solidão antes que ela a esvaziasse. Há muito tempo a vem preenchendo com palavras cruzadas, experiências culinárias, descobertas científicas necessárias na sua área de atuação profissional, observação de pores do sol em cidades históricas e interesse genuíno por bétulas.
Não se cansa de aprender, mas também não vê problema em reaprender o que, em um primeiro momento, aprendeu sem clareza ou profundidade.
Ou sou da beleza que de belo só tem a imagem?
Dos braços deitados sobre o colo para a alma?
A criança choraminga e se sacode no andador. Já passou faz tempo do horário da mamadeira mais esperada do dia. Ninguém a escuta. Importam-se com ela, mas estão distraídos com a tentativa de um provar ao outro que está certo. Banalidades são colocadas na balança da prestação de contas executada nesta manhã de quarta-feira de uma semana em que a umidade do ar está tão baixa quanto a paciência deles. Dia de desopilar o fígado ao colocar as cartas na mesa.
Ela faz a única coisa que pode fazer diante de quem é: colocar os pulmões para funcionar.
A minha alma amuada, que se encolhe num canto,
enveredando sutilezas pelas rudezas tão minhas.
Diante do espelho, ajeita os cabelos e reconhece o tempo. Houve quando a leveza reinava plena na sua rotina. Era se dedicar a aprender para se tornar. Acumular experiências para se definir. Construir para se identificar com o resultado da construção. Prosperar para sobreviver.
Hoje, tem de brigar para manter a leveza saudável, mas não se importa. Apesar de ser visita que às vezes não aparece, de ceder a vaga aos rompantes que geram arrependimentos, ainda é presença em tempos caóticos, de desacreditar-se, questionar o que viveu e desconstruir certezas.
Mantém a intimidade com a leveza de quem a conhece e reconhece. Sabe que ela pode surgir da agitação provocada por sonhos embrionários, afeto por bichos, plantas e pessoas, drinques experimentais ao balcão de um daqueles bares preferidos.
Que nem sempre a leveza chega sem um bom desafio.
Se pudesse, mudaria o mundo. Sabe que não tem esse poder, não sozinha. Assim, muda o mundo um pouco a cada dia, colabora para que outros também o façam, sem comprometer o direito (e às vezes dever) de se posicionar a respeito das injustiças, de erguer a voz quando este é o gesto necessário para ser ouvida. Para tanto, tornou-se também boa ouvinte.
Na frente do espelho, observa histórias registradas pelos lugares onde já esteve e ainda deseja conhecer. Lugares que a geografia ajuda a encontrar e outros que dependem de jornadas interiores.
Sabe que a história de cada pessoa deixa marcas, mas também cria mapas que desaguam histórias que valem a pena serem vividas. E por pouco saber sobre o tudo, não perde oportunidades de ser feliz.
E acontece de alegrias mais significativas serem as escolhidas.
Quero comer uma fruta de doçura que dure o instante,
como dura até hoje o ontem que sou.
Comentários
Eduardo, eu tento. A tentativa me mantém e deslumbra.
Zoraya, que esse agarro seja dos bons.
Paulo, obrigada pela leveza que me oferece com seu comentário.