APENAS UM RETRATO >> Sergio Geia

 

Retiro o porta-retratos da estante, desloco-o até minha mesa de trabalho. Quero observar enquanto escrevo. Há dias penso nisso. 
 
Céu branco, o dia era frio. Eu tinha farto cabelo castanho. É possível ver na fotografia os tufos crescendo sobre a nuca e ameaçando descer pelas costas. Uma blusa de moletom azul e branca, a gola de uma camisa escura para fora no pescoço. Nas minhas mãos um violão de tampo bege, eu toco e canto. 
 
Talvez 1988 ou 1989. Tempos em que eu acalentava sonhos, que tocava guitarra e cantava num grupo de rock. 
 
Ao lado, Darci faz um si maior no meu violão, um Giannini comprado do Hugo Cursino, tampo laranja, pequeno, bem jeitoso, gostoso de tocar. Darci era magro e cabeludo, assim como eu, e não usávamos óculos. Ao seu lado, Érito no pandeiro, e o saudoso Fabinho Monteiro no chocalho feito de latinhas de refrigerante. Os quatro tocam instrumentos e cantam, menos Fabinho, que parece carregar um cigarro no canto da boca. 
 
Estávamos num palco erguido no pátio da Basílica de Aparecida do Norte, não sei quem bateu a foto. Era um encontro de jovens do Brasil. Privilegiados, do alto daquela caixa armada para os instrumentistas e cantores — eram centenas —, conseguíamos enxergar o pátio lotado, jovens animados, pulando e cantando, parecia um show do Oasis em Manchester. 
 
Tenho pequenos lampejos de lembranças daquele dia, o que é uma pena. Lembro do nosso grupo, que estava lá em peso, com camisas, faixas e bandeiras, no meio da multidão. Faltam-me lembranças; faltam-me fotografias. 
 
Lembro que na volta, no ônibus, assisti a um acidente na rua marginal à rodovia; um homem caiu da moto, se espatifou no chão, sozinho. Mas consegui também vê-lo se levantar, desanimado, e essa última visão me acalmou. 
 
Ao chegar em casa, me arrumei às pressas, tinha ingressos, não poderia perder o show do Jô no Teatro São João. Lembro que em determinado momento do espetáculo, Jô desceu do palco, conversou com a plateia, chegou muito próximo de onde estávamos sentados, perguntou algo à minha mãe. No fim, colocou-a de pé, e deu-lhe um beijo trinado na face; e uma piscadinha. Nas semanas seguintes minha mãe era só alegria, recebera um beijo do Jô Soares, e uma piscadinha. 
 
Perdão, queridos, mas é apenas um retrato e a memória já anda fraca. Por mais que eu mergulhe nelas, nada mais encontro. Acho que nem tenho tanta segurança assim com a ordem cronológica dessas lembranças — a idade pesa? —, nem se os fatos ocorreram todos no mesmo dia. Mas sei que são boas lembranças, que me afagam neste dia frio e cinza.

Comentários

Nadia Coldebella disse…
Desmemoriados ficamos todos nós com o passar do tempo, talvez um dispositivo de segurança pra nós proteger do excesso de nostalgia.
Sérgio, vc é um mágico: olha uma foto e abracadabra! Tira uma crônica da cartola!
João D'Olyveira disse…
Toda crônica é o resultado de uma fotografia real ou imaginária, um olhar individualizado de um autor. Se a "fotografia" estiver em um porta-retrato, ocorre uma demarcação concisa e precisa, porque objetiva. Todavia, como o olhar de um autor libera-se para a pluralidade de uma objetiva, em uma imagem singular o resultado pode e até deve ser plural. O autor, em seus próprios processos internos, externiza e resgata memórias, e soma, em um dia, o que há tempos estava dividido. E assim faz Sérgio, com maestria. Parabéns!
Anônimo disse…
Simplesmente sensacional, obrigado amigo pela crônica, pelas lembranças e pela observação do magrinho, rsrsrs, Trocamos violão nesse dia, e estivemos juntos no teatro São João vendo o Jô, e sua Mãe havia acabado de se sentar na cadeira que antes estava vazia por alguém que faltara no espetáculo, você se lembra? Boas lembranças amigo.
Darci Siqueira disse…
Anônimo disse...
Simplesmente sensacional, obrigado amigo pela crônica, pelas lembranças e pela observação do magrinho, rsrsrs, Trocamos violão nesse dia, e estivemos juntos no teatro São João vendo o Jô, e sua Mãe havia acabado de se sentar na cadeira que antes estava vazia por alguém que faltara no espetáculo, você se lembra? Boas lembranças amigo.

11 de setembro de 2021 19:23
sergio geia disse…
Nádia, querida, a foto me chamava. Demorou mas a mágica aconteceu rsrs.

Caro João, honrado pelo comentário. Grande abraço!

É isso Darci. Dona Vânia ficou muito contente com o beijo do Jô. E aquele dia em Aparecida foi o máximo. Grato, amigo.

Zoraya Cesar disse…
Nunca é apenas um retrato, Sergio, nunca. E vc me emocionou demais. Obrigada.
Albir disse…
Ultimamente tenho curtido muito a nostalgia alheia. Acho que ajuda a preencher as lacunas da minha própria memória.
sergiogeia disse…

Grato, Zô. É o baú das lembranças que precisa ser sempre preenchido com o presente, mas ultimamente...

Boa Albir rsrs.

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