UM ROTEIRO PARA NINGUÉM >>> Nádia Coldebella

 

 

ABERTURA DA CENA 01

A câmera filma do alto. No centro da imagem, há um ponto branco que destaca-se num fundo verde. A câmera se aproxima lentamente do ponto branco e, aos poucos, uma imagem feminina, de costas, aparece no centro do quadro. A câmera gira 180 graus e o rosto de uma mulher é enquadrado pela lente. A câmera se aproxima dos olhos da mulher. Os olhos da mulher, que nem piscam, ocupam toda a tela. Após alguns segundos, a câmera se distancia e é possível ver a mulher por inteiro. Está vestida de branco e sentada, imóvel, no gramado.

 

[AÇÃO]

A mulher não faz nada, nem se move. Seus olhos brilham por causa das lágrimas que não caem. Eles estão bem abertos. Ela apenas está ali parada. Ela não fala, só pensa.

 

MULHER QUE NÃO SE MOVE  

(A câmera se afasta. Ninguém se aproxima, Ninguém se move no local, nem o vento. Ninguém fala com ela.)

 

NINGUÉM FALA COM A MULHER

(Ninguém senta ao lado dela. Ninguém finge ouvi-la. A mulher que não se move continua imóvel)

MULHER QUE NÃO SE MOVE

(A câmera se aproxima de Ninguém. A câmera procura enquadrar Alguém, mas Ninguém é enquadrado)

 

NINGUÉM FALA COM A MULHER

(A mulher quase sorri, pensando que Ninguém pode ouvi-la. A câmera agora enquadra seus olhos, que se fecham. A lágrima presa cai.)

A câmera se afasta da mulher, filmando-a sempre de frente. A imagem se eleva. A mulher é filmada do alto. A imagem lentamente perde o foco até tudo ficar preto.

 

FIM DA CENA 01

______

ABERTURA DA CENA 02

A lente da câmera foca a escuridão, que lentamente se dissipa, revelando um prato de salada verde. A câmera se afasta um pouco e a lente enquadra a mesa de um restaurante. Se afasta mais um pouco e é possível ver vários pratos sendo servidos. Uma mulher vestida socialmente está sentada, sozinha, com a faca numa mão e o garfo na outra. Ela olha para a comida, mas não toca nela.

 

[AÇÃO]

A mulher apenas olha para a comida, mas não toca nela.

 

MULHER QUE NÃO TOCA NA COMIDA

(A câmera foca frontalmente a mulher, como se ocupasse o lugar de Alguém. A mulher levanta os olhos procurando Alguém e Ninguém olha para ela.)

 

NINGUÉM COME COM A MULHER

(Ninguém serve a mulher. Ninguém chama o garçom. Ninguém pede bebidas. Ninguém se oferece para pagar a conta. Ninguém conversa com a mulher.)

MULHER QUE NÃO TOCA NA COMIDA

(A mulher deposita os talheres sobre a mesa e deixa os braços apoiados nela. Ninguém critica a mulher. A câmera foca o garfo, depois foca nos olhos da mulher, que não piscam. A câmera faz um giro de 360 graus, filmando todo o restaurante, que está bastante movimentado. Ninguém é enquadrado pelas lentes)

 

NINGUÉM COME COM A MULHER

(A câmera foca a mulher, que continua olhando para as lentes como se olhasse para Alguém. Mas ela olha para Ninguém. A câmera foca a comida da mulher. As mãos da mulher estão pousadas ao lado do prato.

A imagem é lentamente desfocada, até tudo ficar preto.

 

FIM DA CENA 02

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ABERTURA DA CENA 03

A lente da câmera foca a escuridão. Repentinamente acende-se uma luz que revela o quarto de um casal. Uma mulher está de pijama, sentada imóvel na cama. Só um lado da cama está desarrumado, que é o lado em que a mulher dormiu. Ela olha distraída para o lado intocado. A câmera filma tudo da porta do quarto, como se Alguém olhasse para a mulher da soleira da porta.

 

[AÇÃO]

A mulher acaricia o lado intocado da cama. Ela tenta chorar, mas as lágrimas não caem. Ela para de acariciar o lado intocado da cama. Em seguida, deita-se em posição fetal.

 

MULHER QUE SE DEITA EM POSIÇÃO FETAL  

(A câmera se aproxima da mulher. Ninguém entra no quarto. Ninguém deita ao lado da mulher. A mulher suspira. Agora ela chora por dentro.)

 

NINGUÉM SE DEITA AO LADO DA MULHER

(Ninguém acaricia a mulher. Ninguém olha para a mulher. Ninguém se importa com a mulher. Ninguém fica perto da mulher.)

MULHER QUE SE DEITA EM POSIÇÃO FETAL  

(A câmera foca a cama vazia. A câmera procura por Alguém, mas Ninguém aparece. Ninguém é enquadrado pela câmera. A câmera novamente procura enquadrar Alguém, mas Ninguém é enquadrado)

 

NINGUÉM SE DEITA AO LADO DA MULHER

(A câmera foca a mulher. Ela se encolhe mais ainda e os joelhos tocam a testa. Ela pensa que se a dor for bem grande, Ninguém terá pena dela. Ela pensa que Ninguém entende a dor. Se a dor for muito grande, Ninguém poderá ajudá-la.)

A câmera retorna à posição inicial, focalizando a cama da porta do quarto, como se Alguém, da soleira da porta, olhasse para a mulher, mas Ninguém está lá. A luz se apaga repentinamente.

 

FIM DA CENA 03 E DA HISTÓRIA, POR ENQUANTO.


Comentários

Jander Minesso disse…
Poetizar um roteiro; que bela ideia. E ficou lindo, ainda que doído. Talvez seja crueldade ver beleza nessa dor, mas tem.
Ana Raja disse…
Que solidão insuportável. Belo roteiro de momentos reais.
Adorei, Nádia!
Zoraya Cesar disse…
Você roteirizou o Nada, o Silêncio, a Solidão, a substituição de Alguém por Ninguém de forma tão dolorosa e contundente, q deu até medo. E que jogo de palavras e sentidos! Uau.
whisner disse…
um texto doído, uma solidão inadiável, forte. parabéns.
Albir disse…
Adorando sua fase de roteirista.
Soraya Jordão disse…
TORÇO PARA QUE NO FINAL DA HISTÓRIA, A CAMA IMENSA DE VAZIO, SEJA TODA OCUPADA POR ELA. COM MUITOS TRAVISSEIROS, PERNA ESPARRAMADA E A DELÍCIA DE TER UMA CAMA SÓ PARA SI.

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