ROTEIRO DAS PRAGAS DE UMA PAIXÃO >>> Nádia Coldebella




ABERTURA DA CENA 01

Uma mulher de 40 anos planta flores no jardim em frente à casa. Está de péssimo humor, por causa da barulheira das crianças que jogam bola na rua. Pousado na cerca, o papagaio da mulher grita estridentemente. Ele fala palavrões para a criançada. Uma moto enorme para na calçada, perto do local em que o papagaio está pousado. Uma moça de minissaia, salto alto e batom vermelho sai da casa vizinha e dá um beijo no motoqueiro, um homem de cerca de 25 anos, vestido com calça, coturno, luvas e jaqueta de couro pretos. Ele faz roncar o motor da moto, assustando o papagaio. A ave bate as asas e grita novos palavrões, dessa vez para o motoqueiro. O motoqueiro desliga a moto, retira capacete e se aproxima do papagaio. Está intrigado.


[Ação]

A mulher de 40 anos interrompe o trabalho e segue até o canto da cerca, onde está pousado o papagaio, e começa a gritar com o motoqueiro.


Mulher de 40 anos

Ei, você ai! Dá pra parar de se exibir? Quer matar meu papagaio de susto?

(O motoqueiro dá um sorriso para a mulher. A mulher devolve para o motoqueiro um olhar furioso.)


Motoqueiro

(O motoqueiro fala gentilmente)

Essa ave é muito mal-educada, minha senhora.

 

Mulher de 40 anos

Minha senhora é a esculhambada da sua mãe e mal educado é o esgualepado do seu pai! Vê se me erra! Vai ver se eu tô na esquina!

(O motoqueiro dá uma gargalhada, porque a casa da mulher fica na esquina. Depois se afasta e vai para a rua, para jogar bola com as crianças, sob o olhar apaixonado da filha da vizinha)

 

Mulher de 40 anos

(Se afasta, deixando o papagaio, que ainda grita palavrões para o motoqueiro, pousado na cerca. Ela volta a plantar flores e pragueja baixinho)

Motoqueiro filho duma mãe. Serzinho grosso e mal-educado. Esse cara ainda vai fazer merda com meu papagaio.

 

[Ação]

O motoqueiro tira a jaqueta e começa a jogar futebol com as crianças. É bastante forte. A mulher olha para ele. Estremece e logo abaixa a cabeça. Depois de alguns minutos, ele mira a bola para um gol imaginário, mas acaba errando o chute e a bola é arremessada na direção da cerca, atingindo em cheio o papagaio. A criançada grita “Uhh”, atraindo a atenção da mulher.


Mulher de 40 anos

(Larga as ferramentas e corre desesperada e aos berros até o local em que o papagaio caiu duro. Olha com ódio para o motoqueiro)

Você matou meu papagaio!! Você matou meu papagaio!


Fim da cena 01.


____________

ABERTURA DA CENA 02

Cerca de uma semana após a morte do papagaio. A mulher de 40 anos encontra-se parada, em frente a porta de entrada da casa. Observa o motoqueiro e a filha da vizinha. Eles estão parados junto a cerca, onde o papagaio ficava. Conversam animadamente. O motoqueiro entrega para a namorada uma caixa de transporte, que contém um gato. O motoqueiro vai viajar alguns dias e a moça é quem cuidará do gato.


[Ação]

A mulher de 40 anos está em pé, junto a porta de entrada, com um saco de limões que acabara de comprar. Ela está furiosa, porque o gato do motoqueiro circula entre os canteiros de flores que agora começam a brotar.


Mulher de 40 anos

Ei, gato! Sai daí!

(O gato ignora a mulher e continua circulando)


Mulher de 40 anos

Ah, sua peste! Suma do meu jardim!

(O gato ignora a mulher e para sobre um canteiro de rosas recém-plantadas)

 

Mulher de 40 anos

(Grita mais alto quando o gato começa a cavar a terra)

Nem pensa em fazer buraco no meu jardim, bicho desgracento, senão você vai ver! Eu te mato!

 

Mulher de 40 anos

(O gato se prepara para fazer cocô no buraco recém-feito. A mulher retira um limão da sacola e atira com força para assustar o gato. Ela mira no canteiro)

Vaza!!

 

Motoqueiro

(O limão acerta em cheio a cabeça do gato, que sai correndo, pula a cerca e cai direto no colo do motoqueiro, que acabara de chegar. O gato olha vesgamente para o motoqueiro, bota a língua de fora, deixa a cabeça pender para o lado e morre. O motoqueiro se desespera)

Pelo amor de Deus, moça! Você matou meu gato! Você matou meu gato!

 

Fim da cena 02.

 

 ______

ABERTURA DA CENA 03

É a noite do mesmo dia da morte do gato. Está chovendo. Relâmpagos e trovões atravessam o céu. A luz acaba. A mulher de 40 anos está dentro de casa. Está chorando porque não queria matar o gato. Ela escuta o portão da casa abrir. Ela se posiciona próxima a janela de vidro, que fica ao lado da porta de entrada. Uma mão pousa na janela e sob um relâmpago, a mulher percebe que é uma mão vestida com uma luva preta de couro. Pequenos metais enfeitam a luva. A mulher se assusta e perde o controle.


[Ação]

A mulher de 40 anos abre a porta. Está muito assustada e não reconhece a vizinha, a filha da vizinha e o motoqueiro. Sem pensar, acerta um soco no olho do motoqueiro. Em seguida, desmaia.


Filha da vizinha

(Em prantos, abraçando o motoqueiro)

Ela matou meu namorado! Matou meu namorado!

(O motoqueiro se mexe e coloca a mão sobre o olho)


Vizinha

(Abanando a mulher desmaiada)

Matou nada! Ela é que morreu.

(A mulher desmaiada não se mexe e o motoqueiro a pega no colo e a carrega para dentro da casa)


[Ação]

A mulher de 40 anos recupera os sentidos, mas está trêmula. Está dentro de casa, deitada no sofá. A vizinha está ao seu lado. A mulher vê o motoqueiro sentado numa poltrona. A filha da vizinha ajeita um bife no olho socado do motoqueiro. Com o olho bom, o motoqueiro olha de um jeito esquisito para a mulher de 40 anos. O olho bom brilha um brilho estranho.

 

Fim da cena 03.

 

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ABERTURA DA CENA 04

Final da tarde do terceiro dia depois da morte do gato. Está garoando. A mulher de 40 anos vai até a frente da casa, incomodada com o barulho.


[Ação]

O motoqueiro passa insistentemente, indo e voltando pela rua. Na ida, ele acelera a moto quando passa em frente à casa da mulher de 40 anos. Na volta, ele empina a moto. Ele está sem capacete e parece atordoado. As vezes ele desacelera a moto e olha para a mulher. O olho dele ainda está roxo do soco que levou.


Mulher de 40 anos

(Começa a andar de um lado para o outro, irritada)

O que ele quer? Vai acabar machucando alguém.

(Ela vai para junto da cerca. O motoqueiro desacelera a moto e ao chegar perto dela, faz o motor rugir bem alto. Ela tem um sobressalto)


Mulher de 40 anos

(Prepara-se para xingar o motoqueiro, que acelera a moto e sai em toda a velocidade)

Seu filho de uma puta! Tomara que se estabaque!


[Ação]

O motoqueiro chega no cruzamento, freia, mas não consegue parar a moto. Ele desliza sobre o asfalto molhado e bate em cheio num carro estacionado do outro lado da rua. Ele cai da moto, desacordado. A mulher de 40 anos sai correndo até o lugar do acidente. Ela está em pânico.

 

Mulher de 40 anos

(Chorando)

Ah, merda! Eu e minha língua! Agora matei o motoqueiro!

 

[Ação]

A mulher de 40 anos é a primeira a chegar. Ela se senta no asfalto e coloca a cabeça do motoqueiro sobre seu colo, envolvendo-o com seus braços. O motoqueiro acorda nos braços da mulher de 40 anos. Olha para ela e dá um sorriso. O olho roxo também tem um brilho estranho.

 

Fim da cena 04.

 

 _________

ABERTURA DA CENA 05

Final da tarde do sétimo dia após o acidente de moto. É um dia com bastante vento. O céu começa a ficar vermelho porque logo o sol irá se por. O motoqueiro está em frente à casa da vizinha, conversando com a filha da vizinha.


[Ação]

A filha da vizinha chora. Ela soca o peito do motoqueiro. Ele a segura delicadamente pelos pulsos.


Filha da vizinha

(Fungando)

Como você pode fazer isso comigo?

(Ela liberta as mãos e limpa os olhos)


Motoqueiro

(Bastante ansioso, olhando na direção da casa da mulher de 40 anos.)

Foi mais forte que eu. Aconteceu.

(Se afasta da moça em direção a moto.)


[Ação]

A mulher de 40 anos sai de casa, vestindo uma roupa de couro preta, bastante justa. Também usa as luvas do motoqueiro. Ela solta os cabelos, que agora se agitam com o vento. Ela vai em direção a rua. O motoqueiro para a moto e tira o capacete. Os dois olhos do motoqueiro brilham apaixonadamente. Ele entrega um capacete para a mulher de 40 anos. Ela sobe na moto e aperta forte a cintura do motoqueiro, que estremece e suspira fundo. Ele acelera a moto e segue em direção ao pôr do sol, sob os fungados sentidos da filha da vizinha.

 

Fim da história.


Comentários

Soraya Jordão disse…
A paixão, essa danada, não respeita nenhum limite.
Ana Raja disse…
A paixão arrebatadora acontece nos corações mais improváveis. Adorei o título!
branco disse…
Que coisa ! Essa " novela de cena 1, ação" cria um clima que me fez ansiosamente aguardar pela "cena 2, ação". No entanto, nada disso se sustentaria sem uma história criativa, instigante e (como de costume) ricamente narrada.
Brilhante!
André Ferrer disse…
A estrutura de roteiro confere um tempo de leitura diferente Nádia. Interessante. Dois bichos morreram, o que diz respeito a uma certa tradição. Rsrsrs! O final surpreendeu porque uma mulher de 40 ainda não combina com um jovem motoqueiro. Ou combina? A nova balzaquiana já tem sessenta anos? Adorei.
Zoraya Cesar disse…
HAHAHAAHAMEEEEIIIII!
que história arrebatadora! sinistra. apaixonante!
quebra váaaarios paradigmas de uma vez só!
mata bichos - o papagaio, que externa a amargura e rabugice da vizinha tinha mesmo de ser o primeiro a morrer; o gato, que expressa a sinuosidade de uma paixão escondida, em seguida. Agora a vizinha pode se libertar de sua amargura e o motoqueiro de sua máscara e ele passa a se exibir ostensivamente.
desconstroi o status de que homem mais novo não pode ficar com mulher mais velha
desconstroi a ilusão de que o amor cabe em caixas formatadas pela sociedade
e ainda termina com cena de filme
e ainda é em capítulos

Depois não quer ser a Countess Velvet! veludo puro!
Albir disse…
Teatróloga - mais uma face da multiartista. Maneja com facilidade a caneta, o teclado, as crianças, o divã e... a pá (ui!).

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