QUATORZE ZERO OITO >> Ana Raja


Quase duas da tarde, e o silêncio no ônibus faz com que as conversas possam ser entendidas. Por estar com as janelas fechadas, o barulho dos carros não invade o interior do 1408.

No banco à minha frente, duas mulheres. Uma chama a outra de filha, apesar de isso não ser indicativo de tal parentesco. Eu chamo a minha sobrinha de filha. Quando amamos alguém profundamente, nos colocamos nesse papel de amor e proteção. 

A mais nova chora muito, a outra segura a mão dela pedindo com a voz mansa: pare com isso. Delicadamente, a abraça e diz palavras de consolo.

Me agonia ver alguém chorando desse jeito. Quero me levantar, ir até lá e perguntar o que está acontecendo, se posso ajudá-las. No entanto, não mexo um músculo. Como se comportar nessa situação? Melhor não fazer nada. Ela está acompanhada. Se estivesse sozinha, me sentaria ao seu lado.

“Calma, Sophia.”

É assim que descubro como a chamam, e me interesso ainda mais pela sua história. Acho lindo esse nome. Por que Sophia chora tanto assim? Sofre a dor do amor? Alguém querido morreu? Não consegue realizar um sonho? Será que perdeu o emprego?

A viagem de ônibus até a estação do metrô leva trinta minutos. Durante o trajeto, compreendi que Sophia havia acabado de revisitar a dor da rejeição. O choro é por causa das irmãs que não a querem por perto. Em muitos momentos, fala sobre todas estarem perdendo com essa situação, só que, apesar do seu sofrimento, elas saem perdendo muito mais. 

Atenta à conversa, constato que a mulher mais velha é a mãe de Sophia. Ela argumenta, tentando convencer a filha de que o chorar é uma bobagem; aquilo era passado; Sophia tinha conhecimento do pensamento das irmãs, desde criança. Pede que pare de sofrer. Tornou-se mulher forte e com uma visão clara da vida, e vem desfrutando, desde o dia em que chegou ao mundo, do amor dedicado dos pais. Sophia diz estar ciente disso, mas sente, na alma, a ausência da não convivência familiar.

Desço do ônibus pensando o quanto temos de Sophia em nós. A criança que fomos, e o que vivemos no começo da nossa jornada, dá as caras de vez em quando? O ressentimento, as frustações experimentadas na inocência morrem na vida adulta ou estão guardadas no porão das lembranças? 

Sigo remoendo essa história e procurando a criança que fui, que não soube lidar com as tristezas. Eu a encontro quietinha, em um canto de mim, e percebo que, às vezes, gosta de sair desse lugar para me visitar, assim como aconteceu com a Sophia. Compreendo que nem sempre dou importância a sua presença. Então, ela se rebela, mas não pelos mesmos motivos de Sophia. Chega de uma forma amena, trazendo um vento frio, em dias quentes. 

Sempre reencontramos a criança frágil que um dia fomos, seja no transporte público ou na solidão de um quarto escuro, pouco antes de dormir. 


Imagem © Mystic Art Design, por Pixabay

Comentários

Jander Minesso disse…
Um podcaster que gosto muito costuma dizer: “Crianças não são pequenos adultos, mas adultos são crianças grandes.” Belo texto, Ana.
Albir disse…
Que beleza, Ana!
Sim, estamos todos um pouco em Sophia.
Ana Helen Reis disse…
Essa nossa criança interior está sempre ali, é o que nos constituiu, nas alegrias e tristezas. Como li outro dia, nós olhamos o mundo uma vez somente, na infância- depois só reproduzimos o que captamos.
Beijos
Nadia Coldebella disse…
Ontem mesmo me perguntei onde estava a adulta em mim, porque as vezes reajo as coisas do mundo assustada igual criança e revisto meu medo da máscara de racionalidade da vida adulta. Mas vendo Sophia e sua reflexão, também penso que a sabedoria não tem idade, que é possível ver através da dor, mesmo quando nossa criança interior grita de medo. Difícil mesmo é não deixar a dor dos nossos maiores medos deturpar nossa visão.

Texto maravilhoso, como todos os que vc escreve!
Gde abç!
Soraya Jordão disse…
Ah, quantas Sophias por aí. A minha adora aparecer. Lindo, Ana! Que crônica!
Luciana G. disse…
Minha Sophia anda gritando pelos porões do meu sentimento. Por vzs, só pra me lembrar que ela cresceu e eu não vi. Ou não deixei, justamente pra tê-la comigo nos dias que me encolho, como ela, e me fortaleço nas lembranças que ela me dá. Nesse momento eu abraço ela, minha pequena “eu” e repito: “vc conseguiu, vc consegue”. 🫠🩷
Vanessa P. Diniz disse…
Realmente! Em algum momento somos sofia que mesmo não podendo choramos para aliviar a dor de nossas frustações que na vida adulta muita das vezes não tem solução, so nos resta uns minutinhos de choro msm!
Lindo seu texto!

Também escrevo algumas crônicas se puder visitar meu site e escolher alguma pra postar aqui vou me sentir privilegiada!
https://cantinhodapimenta.blogspot.com/
Zoraya Cesar disse…
"Sempre reencontramos a criança frágil que um dia fomos, seja no transporte público ou na solidão de um quarto escuro, pouco antes de dormir." Que beleza de fechamento!
Mas quem disse q minha Sophia me deixa dormir qd resolve aparecer de noite? Tenho tentado presar atenção nela. Até pq ela é responsável por uma parte tão leve na minha vida.

que texto maravilhoso. Como disse a Countess, vc escreve mto bem! Amei!
Elaine da Mata disse…
Maravilha de texto! A Sophia que habita em nós vai e vem. Ela aparece, se esconde, retorna pra o inconsciente e assim num ciclo de emoções ou diante de diversas situações surge pra observar o mundo através dos olhos de nossa alma.

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