SWINGANDO >> Albir José Inácio da Silva
Primeiro só um zumbido. Abre os olhos, mas não enxerga. Logo
os vultos viram enfermeiras e médicos. Por fim entende as palavras.
- Está melhor?
Não, Dona Araci não está melhor. Está acordada, mas o corpo
treme e a respiração é difícil. Como pode estar melhor? Nem quer melhorar –
quer morrer. Lembra-se dos últimos momentos antes de a vista escurecer:
delegacia, sala cheia, delegado e a vizinha Doroteia, que lhe falava sobre a
dança no ouvido.
Dança com que Dona Araci sonhou a vida toda, mas nunca
dançou. Dança que ela indagou a Seu Ramiro, pé-de-valsa e homem de valor, como
é que era, porque não gostava dessas indecências que se dançavam por aí, como
funk e lambada. Dança séria, elegante, graciosa, como ele explicou. Dança que
ela incentivou a filha Samara a dançar, para que ela conhecesse gente de bem e
se casasse com todo respeito.
Muitas vezes perguntou a Samara por uma apresentação para
parentes e amigos. Queria ver a filha deslizando pelo salão nos braços de um
cavalheiro distinto. Queria realizar na filha os próprios sonhos. Mas a filha
desconversava, dizia que ainda estava aprendendo.
A enfermeira lhe põe o termômetro na boca e mede a pressão. O
médico puxa a pálpebra de um olho, depois do outro. Rabisca pedidos urgentes de
exames.
Samara não tinha sido um anjinho na infância, mas isso nunca
preocupou Dona Araci, que não deixava espaços para grandes rebeldias. Qualquer
desobediência ou malcriação era exemplarmente sacudida com um cinto que para
essa finalidade ficava pendurado atrás da porta. Mas a idade deu juízo à menina
e depois dos dezoito o cinto não se fez mais necessário.
Isso não significa que Dona Araci diminuiu a vigilância.
Controlava horários, conhecia as amigas e as mães das amigas que Samara
frequentava. Dava incertas na porta da escola noturna e telefonava quando menos
se esperava.
Revoltavam-se as outras senhoras porque, segundo elas, Dona
Araci exercia esse controle também sobre as filhas delas, esmerando-se na arte
de identificar e classificar pecados, e promovendo a devida divulgação. O que
ela não gostava era de indecência, pecado e esculhambação – dizia - não
pensassem que ficaria calada diante da imoralidade. Quem cala, consente.
Essa coisa de dança - pensa agora enquanto os exames
prosseguem - foi ela mesma quem sugeriu. Mas, quando ouviu Samara ao telefone
falando do ritmo, foi perguntar a Seu Ramiro, pessoa de sua confiança e uma
verdadeira enciclopédia, que tinha fama de sábio.
- O swing surgiu nos Estados Unidos com grupos negros
dançando ao som de jazz no início dos anos vinte do século passado. As
primeiras danças desse tipo foram o Charleston, o Lindy Hop, o Balboa e o Foxtrot,
que deram origem a várias outras danças.
Tranquilizou-se Dona Araci: dança séria, de antigamente, como
convinha a uma moça. E já estava na hora. Nada de mal poderia acontecer com a
educação que dera a Samara. Se ela ficasse trancada em casa, como ia arranjar
marido? Esse era outro sonho: a filha de branco entrando na igreja. Tem aí umas
comadres que iam morrer de inveja, desperdiçadas que estavam suas filhas,
amigadas umas, malfaladas outras, perdidas todas. Mas com ela a coisa era
diferente.
Quando o telefone tocou, avisando que Samara estava presa,
Dona Araci deu um grito e as vizinhas acorreram. Nesses momentos as mágoas são
esquecidas – é assim no subúrbio.
Na delegacia, a autoridade arrancava os cabelos e ameaçava
prender todo mundo:
- A senhora sabia, Dona Araci, que sua filha e o namorado
foram presos numa festa swing com outros sete casais e várias adolescentes?
Então não me venha com essa conversa mole de moralismo!
- Sabia, claro que sabia – exasperou-se - Eu sei de todos os
passos da minha filha. E desde quando alguém é preso por dançar? Tem umas
danças indecentes por aí, como a lambada
e o funk, mas nem por essas ninguém nunca foi preso. Ah, alguém vai ter que se
explicar por aqui! Estou partindo pra corregedoria!
Coube a Doroteia, uma das três vizinhas que tinham
acompanhado Dona Araci à delegacia - e que mesmo amiga era alvo frequente de
sua impiedosa língua - o prazer de explicar a ela a diferença entre o elegante
ritmo americano e o swing que Samara costumava “dançar”. Foi ela também que a
amparou até a chegada da ambulância.
No hospital as coisas vão muito bem. Os exames mostraram que
Dona Araci tem saúde de ferro e o médico diz que ela pode fazer qualquer coisa:
- Até dançar, Dona Araci. Até dançar!
OBS: Este texto integra o Projeto Crônica de um Ontem
e foi publicado originalmente em 6 de maio de 2013.
Comentários
Lembrei que uma vez minha mãe ouviu na teve e me perguntou o que era ménage (o complemento ela não sabia dizer). Logico que expliquei, porque sou boa filha, mas ela fez a cara da dona Araci e me perguntou: Isso existe?
Ótima historia!