SE DESSE >> JANDER MINESSO
Se desse para engravidar pelo ânus, talvez a opinião do Mário fosse diferente.
Mário é muito homem. Só que, num mundo onde desse para engravidar pelo ânus, algumas coisas não dependeriam só dele. Uma rua escura numa quinta à noite, Mário de bobeira a caminho do carro, meio alegre depois de uns goles com o pessoal da firma… tudo isso seria um terreno fértil.
Imaginem: Mário tateando os bolsos em busca da chave do carro, zonzo de cachaça, alheio a tudo. De repente, bum! Uma pancada o acerta em cheio pelas costas. Antes que consiga entender o que aconteceu, ele já está de bruços no capô do carro. Alguma coisa forte feito um urso aperta seu rosto contra a lataria. Ofegante e apavorado, Mário sente um vento fresco tocar seus testículos. Leva uma fração de segundo entre entender o que está acontecendo e sentir algo gigantesco invadindo o orifício da extremidade distal inferior do seu intestino.
Dói.
A primeira reação é se debater, mas aquilo tem a força um touro. Mário não consegue se mexer. A sensação de constipação, a batedeira no peito e o formigamento atrás da nuca viram uma coisa só. O corpo inteiro pulsa de aflição e fúria. Seu rosto é uma mistura de sangue, lágrimas e catarro espremidos contra o capô. Isso não pode ser verdade, mas é.
Para piorar, uma lembrança assalta-lhe a mente: Mário não toma anticoncepcional. Por que ele tomaria anticoncepcional se nunca teve a intenção de engravidar? O arrependimento se mistura com a dor enquanto aquela massa cada vez mais dura e inchada vai e vem feito uma serra. A essa altura, Mário só quer que acabe.
E uma hora acaba: algo quente gruda na parede do seu reto. Uma, duas, três vezes. Quatro. Liberada a carga seminal, a coisa puxa os cabelos de Mário e arremessa sua cabeça contra o capô do carro.
Silêncio.
Minutos depois, a consciência volta junto com o pavor, o ódio e a vergonha. Mário olha em volta, mas a rua continua deserta. Seu coração parece pulsar entre as nádegas. Dolorido e enjoado, ele se levanta devagar. Ao subir as calças, percebe que a chave do carro está no bolso de sempre. Abre a porta do veículo em câmera lenta, senta no banco do motorista, fecha a porta. Não dá para fazer um B.O. Bem nessa hora, Mário lembra do cheiro de Old Spice no ar. É a gota d’água para o estômago botar tudo para fora. Ele se debate dentro do carro, chora de soluçar. Fica ali por bastante tempo.
Mas o tempo segue, inexorável. Dias depois, os pedaços de sangue seco que saem em uma ou outra ida ao banheiro são a única prova do que aconteceu. Mais algumas semanas se passam, trazendo de volta a rotina e a esperança de que tudo tenha sido só um pesadelo. Só que aí, começam os enjoos. A barriguinha cresce e, junto dela, cresce mais um medo. Daqueles que começam no fundo da cabeça e aos poucos vão tomando conta de cada segundo desperto.
Mário passa seis longos meses tentando se convencer de que não é nada. Vinte e três semanas, para ser exato. Uma hora, não dá mais para fingir que a barriga é de chopp, até porque todo mundo na firma já notou que o Mário, logo ele, parou de beber. A solução é marcar uma consulta numa clínica longe de casa e do trabalho.
Quando o anúncio chega, as tripas quase saem pela boca. Mário vai precisar vender o carro para dar conta dos custos. E mudar para um lugar onde o aluguel seja mais barato. E ninguém vai ajudar, porque ninguém sabe nem pode saber o que aconteceu. O ar da clínica fede a Old Spice. Ele não teve nenhuma escolha sobre o ocorrido, nem antes e nem agora. Tirar é crime. Não só a lembrança, mas também o fruto daquela noite, vão acompanhar Mário pelo resto da vida. Já tomaram a decisão por ele. O chão sob seus pés amolece e começa a se agitar em ondas. O cheiro de Old Spice empesteia a sala de exames. O almoço volta pela garganta.
Ou melhor: voltaria. Afinal, não dá para engravidar pelo ânus. Se desse, talvez a opinião do Mário fosse diferente.
Imagem: Pixabay
Comentários
Que texto, Jander!
Eu atendi muitas vítimas de estupro ao longo da minha vida e posso te dizer q vc descreveu com precisão as emoções, sensações e sentimentos envolvidos. E os preconceitos.
Nem sei o q dizer, só que meu domingo começa com um nó na garganta!
Vc teve a sensibilidade de um Chico Buarque, maior letrista feminista feminino do Brasil. Se eu soubesse como, transformaria seu texto em poema e musicaria. Se Renato Russo estivesse vivo, faria uma saga só com seu texto.
Meu texto de amanhã trata do mesmo tema. E não dá pra ser suave porque já é uma tragédia termos que falar disso. Há mais de oitenta anos isso é matéria pacificada e disciplinada no Código Penal. Neste ritmo, daqui a pouco vamos discutir pelourinho e fogueira pras pecadoras. É o nosso "Conto da Aia".