CAÇA E CAÇADOR >> JANDER MINESSO

 

Um tiro rasga o silêncio na savana africana. Pouco depois, o jipe encosta devagar ao lado do leão recém alvejado. O atirador desce do veículo e caminha sem pressa na direção do bicho, que agoniza numa piscina de sangue. O homem agacha e encara o felino.

– Te peguei de jeito, hein?

– Ai, pegou.

– Ai?

– Vou te dar um tiro pra você ver se não dói.

– Não é possível. Eu devo estar delirando por causa do sol.

– Se não for pedir muito, acaba logo com o serviço, por favor. Cof, cof.

– Nunca vi um leão falar antes. Ainda mais português.

– Eu trabalhei com tributação no Brasil por um tempo. Mas na boa: me mata logo. Bota minha carne pra assar, me esfola, usa a pele de coberta, faz seu serviço. Cof. Só agiliza porque tá doendo.

– Ainda não acredito que encontrei um leão falante.

– Falante e burro, né? Nem te vi chegar. Se o pessoal do bando me vê nessa situação, acabou minha dignidade. O Mufasa vai cair em cima da Neide na mesma hora.

– Quem é Neide?

– Minha esposa.

– E esse Mufasa tá dando em cima dela?

– Que diferença faz?

– Me mostra onde tá esse Mufasa que eu dou um jeito nele.

– Cacete, vai matar outro? Cof! Quantos – cof! – tem no seu bando?

– Não tenho bando, não, ô… perdão, qual o seu nome?

– Iérre.

– Prazer. Eduardo.

– Você caça sozinho, Eduardo?

– Isso. Por esporte.

– O que é esporte?

– É um exercício. Uma prática. Um passatempo, saca?

– Não. Mas agiliza o processo, vai. Ai.

– Calma que eu vou dar um jeito nesse machucado.

– Cof, por quê?

– Porque você é legal. Você fala. Vou te levar na televisão e a gente vai faturar uma grana.

– Para com isso. Você tem que se alimentar. É a lei.

– Fica tranquilo. Resolvo esse machucado num minuto e você vai ficar novo. O kit de primeiros socorros fica sempre no jipe.

– E aí, você vai fazer o quê? Morrer de fome?

– Eu não ia me alimentar de você, né? Ninguém come carne de leão.

– Não?

– Na real, tô até maneirando um pouco na carne vermelha.

– Então, por que caralhos você me deu um tiro?

– Já falei que foi por esporte.

– Esporte é matar porque deu vontade?

– Mais ou menos. Só mais uns pontinhos… Pronto. Tá novo.

– Rapaz, ficou bom mesmo. Obrigado.

– Eu sou médico. Isso aí vai sarar logo. E aí, quando eu te levar pra telev…
– Você ainda tem munição?

– Não. Era a última.

– Legal. Vou contar até dez, então.

– Pra quê?

– Pra você ter tempo de correr. Depois, eu vou atrás de você.

– Tá de brincadeira, Iérre? Eu acabei de salvar tua vida.

– Vinte, então.

– Que ingrato!

– Dezenove…

– Devia ter te deixado morrer.

– Dezoito…

– Bicho estúpido!

– Dezessete…

– Se eu tivesse mais uma bala, você já era.

– Se você tivesse. Dezesseis…

– Não me come! Tem um monte de coisa aqui no jipe! Hambúrguer, batata, filé, tem tudo! Me dá um tempinho e eu faço um almoço campeão pra nós dois!

– Quinze…

– Meu gosto é horrível! Tô só pele e osso! Peguei uma infecção intestinal que acabou comigo e se você me comer você vai morrer! Eu tenho esposa e três filhos!

– Eu também. Catorze…

– Pelamordedeus não me come!

– Fica tranquilo que eu não vou te comer. Vai ser só por esporte. Treze…

Imagem: Pixabay

Comentários

Cleber disse…
Valendo…
Ana Raja disse…
É melhor correr!
Como é bom ler as suas crônicas,Jander!
sergio geia disse…
Muito bom, Jander. Que delícia de crônica.
Soraya Jordão disse…
Adorei! leve e profunda.
Zoraya Cesar disse…
Amei, Jander! lavou minha alma hehehe, sempre tive vontade de ver um caçador esportista viver a 'emoção' do outro lado. E, como sempre, ironia fina é maestra!

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