ATRAVESSAR >> Carla Dias


Pirralho nasceu com a cabeça nas nuvens. Não desse jeito que você imaginou ao ler essa declaração. Pior, muito pior.

O pai o salvou de ser atropelado ao atravessar a rua umas tantas vezes. Se o propósito fosse causar taquicardia no adulto responsável, bastava chamar o Pirralho para brincar. Aliás, as mães dos colegas de escola proibiram seus filhos de o convidarem para os aniversários por este motivo. Achei grotesco, mas entendi. Elas nem podiam bater papo enquanto as crianças se divertiam, revezavam-se no “não tira o olho do Pirralho, senão é capaz de ele parar na rodovia”. E apesar de se oferecerem para cuidar do menino durante os eventos, acabavam tensas, porque ele era mestre em fugir da vista dos adultos.

Tomado por desespero, sem terapia capaz de corrigir o filho, o pai o proibiu de colocar os pés na rua se não fosse na companhia dele. De ordem de pai ele entendia e sempre o obedecia.

Mãe o Pirralho não tinha, mas às vezes ficava com o tio, morador da casa ao lado, um curioso, acostumado a tirar os óculos, de muitos graus, para mostrar interesse extra no assunto do dia. O menino gostava mesmo era de escutá-lo contar histórias sobre outros moradores do bairro. No entanto, não raro, quando o levava até a sorveteria ou ao supermercado, o homem às vezes precisava puxá-lo pelo braço, porque ele estacava defronte à pessoa sobre a qual ele falara em conversas anteriores. O tio sabia da ótima memória do sobrinho.

Pirralho não falava, detestava refrigerante e se apaixonou, aos cinco anos de idade, pelo álbum Physical Graffiti, do Led Zeppelin. Escutar In My Time of Dying na repetição, por horas, era para ele o que Parabéns pra você era para a maioria das crianças. O tio observava o menino e enxergava um rastro de contentamento, como se ele ganhasse um presente a cada vez que escutava aquele disco. O pai nunca perdoou o irmão por ter presenteado o filho com aquele “barulho”, mesmo adorando observar a feição dele ao escutar Ten Years Gone. Nesse momento, sua feição era de quem parecia visitar um lugar bonito, ao menos era o que ele gostava de pensar.

Quando o pai morreu, Pirralho não chorou, nem quando teve de se mudar de vez para a casa do tio; ele sim chorou escondido por muito tempo, de saudade do irmão e por não saber se seria capaz de cuidar sozinho do menino. 

O tempo fez sua parte. Pirralho passou de receptor de todo cuidado para responsável por cuidar integralmente do tio, que gostava de pensar que se tratava de retribuição. 

Trabalho mesmo Pirralho conseguiu na mercearia. Era bom funcionário e todos o conheciam e entendiam que falar com ele não significava ter resposta.

No dia do enterro do tio, ele ficou ao lado do caixão o tempo todo, quieto, olhos vidrados na ausência do homem, sob os olhares compadecidos dos vizinhos e amigos do finado.

Depois do sepultamento, algumas pessoas decidiram esperá-lo se despedir, preocupados sobre como seria a vida dele agora que estava por conta, e empunhando contatos de assistentes sociais para ajudá-lo a decidir seu destino. Pirralho se demorou ao lado do túmulo, e tocava, de vez em quando, a foto do tio estampada no azulejo. 

Quando todos acharam que estava pronto para ir embora, ele subiu no túmulo. Mesmo diante do pedido dos presentes para não cometer tal sacrilégio, Pirralho ficou ali, inerte, por alguns minutos, olhando para baixo. Então, começou a dançar e a cantar:


In my time of dying,
want nobody to mourn
All I want for you to do
is take my body home
Well, well, well, so
I can die easy  


Diante do estarrecimento coletivo, Pirralho deu adeus ao tio. Quando parou de dançar e cantar, quase uma hora e um carro de polícia depois, por desejo próprio desceu do túmulo e foi embora.

Ninguém mais soube dele.

Entre os espectadores do acontecimento no cemitério, houve os que se benzessem em protesto e quem considerou ele ter cantado muito bem naquele dia.

Até hoje, anos depois, alguns acham que talvez ele tenha se tornado cantor de bar. Há quem aposte que, finalmente, um carro o tenha pegado de jeito.

Prefiro pensar que alguém venha segurando a mão de Pirralho ao atravessar a rua.


Imagem © intographics, por Pixabay

Comentários

Jander Minesso disse…
Nem a banda mais chata do mundo conseguiu tirar a beleza da alma do Pirralho. Que ele esteja bem e recebendo a whole lotta love.
Ana Raja disse…
Muito bonito, Carla!quanta delicadeza.
Albir disse…
Que personagem interessante, o pirralho!
Zoraya Cesar disse…
que história linda e triiiisssteeee! Mas tão bela, tao comovente, tão amorosa! Só D Carla Dias mesmo.

Jander, só vou te perdoar falar mal do Led Zeppelin pq vc é o Jander kkkkk

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