YAGUARETÉ-ABÁ 1ª parte >> Zoraya Cesar
O caboclo sentiu uma ameaça no ar, um inexplicável cheiro de onça. Nunca sentira cheiro de onça, mas ele acreditava, assim como o bardo inglês do qual ele nunca ouvira falar, que há mais coisas entre o céu e a terra do que acredita nossa vã filosofia. Ele simplesmente sabia que era cheiro de onça-pintada.
As pernas,
já tortas de bebida, bambearam ainda mais. O medo, no entanto, trouxe a
sobriedade que o caso exigia. Olhou em volta, a mão no facão, o coração na
garganta. A lua, ainda menina, não iluminava suficientemente a mata ao redor da
trilha. Só havia escuridão e silêncio. E foi o silêncio que mais o incomodou. Pois
a floresta, à noite, tem uma musicalidade própria - insetos, sapos, roedores,
tudo se mexe, tudo tem vida, tudo tem som. Não existe isso de ‘o silêncio da
noite”. Ele quis estar em qualquer lugar, menos ali.
Não que
fosse covarde, mas contra onça-pintada não tem valentia que persevere. Estugou
o passo. Por que, meu Deus, fui sair tão tarde? Isso é castigo, praga da minha
mulher, mas um homem tem de ver os amigos, a vida não é só trabalho.
E se, pensou
ele, eu estiver imaginando coisas? Onde já se viu ataque de onça nessa trilha? Diminuiu
a passada, sentindo-se meio bobo.
Os arbustos
próximos farfalharam, e ele ouviu algo como um tremor de beiços, menos que um
rosnado. Mas foi suficiente para o caboclo sair correndo, desabalado,
tropeçando, cortando rosto e braços nos galhos e espinhos, perdendo-se em
desespero.
Quando deu
por si, estava às margens do rio. E daí? Não há quem nade melhor que uma
onça-pintada, e ele ainda corria o risco de ser pego por um jacaré. Trepar numa
árvore, nem pensar, uma onça escalava mais fácil e rapidamente que um macaco.
O facão
ainda estava preso na bainha, por algum milagre bem-vindo. Muito pouco poderia
ele, na semiescuridão, contra uma fera que enxergava de noite como se fosse dia
claro. Mas era melhor que nada. Quem sabe poderia feri-la e fugir para um lugar
seguro? Mas, será que era onça mesmo? Vai ver era só um jupará, uma capivara...
Suava e
tremia como um maleitoso. Seus dentes batiam violentamente e, no estranho
silêncio daquela noite, era como se uma mão invisível sacolejasse um esqueleto,
entrechocando seus ossos. Mordeu os lábios, tentando diminuir aquele som
macabro. Seu nervoso liquefazia-se, uma cascata incontrolável que escorria de
seus olhos, nariz e uretra, formando uma poça a seus pés.
Passadas
furtivas pareciam vir de todos os lados, mesmo do rio. Girava em redor de si
mesmo, mas, para onde quer que olhasse, só vislumbrava árvores, mato e as águas
escuras. O terror se enrolava nos nervos do caboclo como arame farpado, dolorosamente.
Numa
tentativa inconsciente de acabar logo com aquela tensão, ele gritou. Gritou.
Gritou. Mas de sua garganta seca só saíram sons baixos e guturais, que não
serviram para diminuir o pavor que desfazia suas entranhas.
Então, de
dentro da penumbra do mato, apareceu o vulto de um homem. O caboclo sentiu uma
ponta de alívio e uma montanha de vergonha. Supersticioso abestado! ‘Cheiro de
onça’, tava era no cagaço da trilha deserta e bêbado. Na certa um dos amigos do
bar estava pregando uma peça. Segurou o facão. Se não fosse amigo, tudo bem.
Com onça ele não tinha salvação, mas com outro homem a história era diferente.
Bom de briga ele era.
Alto e
forte, o recém-chegado se aproximava, lenta e estranhamente familiar. De onde,
de onde conheço essa maneira de andar? – encafifava o caboclo.
A fraca luz
da lua deixava entrever uma pele amarelada, machada por pintas escuras.
Tatuagens? Doença de pele? – perguntava-se o caboclo. A única coisa que tinha
certeza é que sentiu, de novo, o tal ‘cheiro de onça’. Seria o sujeito um
mateiro, ou um caçador de onças? Apertou o facão com mais força, o coração
apertado por uma jiboia faminta.
O estranho
circulava, cauteloso, seus olhos grandes e luminosos fixos no caboclo.
E foi então
que o caboclo entendeu. Aquele era o caminhar de um gato, o andar manemolente dos felinos de patas macias e garras afiadas.
A cena, por
si só, era meio surreal. Uma pequena arena de terra ladeada por um rio e pela
mata. No centro, a luz tímida da lua crescente mal iluminava um homem paralisado
de medo, segurando um facão como que a própria vida. E uma outra figura, que
tinha braços de homem, pernas de homem, cabeça de homem, mas... o caboclo delirava?
Era um
homem, mas também uma onça. Era uma onça, mas também um homem.
O esturro repentino sacudiu as árvores, estremeceu as águas do rio e enlouqueceu o caboclo. Por trás de sua insânia, ele pensou ver o estranho abrir uma bocarra inumana, cheia de presas, os caninos longos e grossos, enormes e amarelados. Um cheiro nauseabundo de morte, sangue e carne pútrida chegou às suas narinas, fazendo-o semidesfalecer.
Mas ele ainda
pôde sentir, antes de morrer, garras afiadas estripando suas vísceras e a
bocarra, quente como o inferno, cravar fundamente as presas em sua cabeça,
fazer um movimento rápido e quebrar seu pescoço.
O homem, ou
a onça, sentou-se calmamente, sabedor que nada ou ninguém iria interromper seu
repasto.
Aquele Yaguareté-abá só comia carne
humana.
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Continua dia
21 de julho a 2ª (e, espero) última parte. Quando, também, colocarei as referências à lenda brasileira. E, claro, um link com o PDF do conto Meu Tio, o Iauaretê, de Guimarães Rosa.
Momento Animal Geografic - só um singelo lembrete: se ouvir esse barulho na mata, corre. A onça-pintada é o maior mamífero carnívoro das Américas, o terceiro maior felino do mundo e exímia caçadora. O caboclo não ficou apavorado à toa. A mordida da onça-pintada é a mais forte entre os grandes felinos, capaz de perfurar a couraça de um jacaré.
Imagem yanomâmi
https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Indio_Yanomami.jpg
https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/9/93/Indio_Yanomami.jpg
Fabio Rodrigues Pozzebom, CC BY 3.0 BR <https://creativecommons.org/licenses/by/3.0/br/deed.en>, via Wikimedia Commons
vídeo https://www.youtube.com/shorts/BVuXfaMHHxs
Comentários
Acho que também havia algo de sólido nessas manifestações do sistema nervoso autônomo.
Foi perda total da cueca, cor certeza.
Nota de rodapé: as histórias que meu pai contava da mata que cercava a fazenda onde ele cresceu eram de matar de medo, mesmo.
branco - será?
anônimo Ferrer - ahhh, tomara q vc goste!
anônimo - cachaça mata sim, mas esse nao morreu disso nao. Até pq o medo o deixou sóbrio rapidinho
Jander - tive que rir! ahahahahahaah, sério. E obrigada! Ah, vou procurar o Marcelo Cassaro, vc despertou minha curiosidade.
Antônio Fernando - e sua gentileza de sempre. A vc tb espero nao decepcionar.
Sérgio - pois é, coitado, né? E obrigada, suspense é uma coisa difícil! O homem-onça faz parte do nosso folclore, nao o inventei nao! Só aproveitei. Na 2a parte falo todas as referências.
Carla - ahnnnn! Q bom q gostou, vc é mto delicada, tive medo de vc nao gostar. Obrigada!
Agora só comentarei na segunda parte kkk