DONA CLARICE >> JANDER MINESSO

 

A Astronomia é uma religião com a qual me identifico bastante. Segundo ela, há muito tempo, tudo o que existe estava espremido num espaço bem pequeno. Tão pequeno que era como se fosse uma coisa só. Aí, esse tudinho minúsculo explodiu, as coisas se espalharam e começaram a se transformar, num processo que nunca mais parou.

Também segundo a Astronomia, algumas das maiores fábricas de transformar coisas que o Universo conhece são as estrelas. Além de serem quentes para cacete, elas fazem uma pressão bruta no seu interior – e é disso que a gente precisa para criar todos os elementos que, entre outras coisas, nos fazem ser o que somos. Por isso há quem diga que somos poeira de estrela.

Pois bem. Quis o acaso que, alguns bilhões de anos depois da primeira explosão, uma parte daquele tudo espalhado pelo Universo se juntasse de um jeito peculiar. O ano era 1942 e parte dessa poeira estelar se organizou na forma de uma menina que por pouco não foi batizada de Geni, mas acabou sendo chamada de Clarice.

Clarice não era a menina mais bem humorada do mundo, mas parecia bem feliz para um amontoado de átomos de sua geração. Abandonando um pouco a Astronomia para falar de História: ela tinha nascido na periferia do mundo, ao final de uma das piores guerras que a humanidade já travou, descendendo de imigrantes que fugiram para o Brasil por causa de outra guerra também ruim. Por isso que, dadas as circunstâncias e apesar do ocasional mau humor, ela era bastante feliz.

A menina cresceu aqui e acolá em algumas cidades do Estado de São Paulo. São Paulo é um pedaço de terra que decidiram chamar assim por causa de uma outra religião. Tal lugar fica em uma bola grandona feita de água e terra que gira em volta de uma das estrelas que mencionei antes. Ao longo do tempo, várias pessoas já passaram pela superfície da tal bola de água e terra. Cada uma delas tomou decisões únicas, formando uma coletânea de acontecimentos chamada vida. Boa parte da coletânea da Clarice foi feita numa parte específica do Estado de São Paulo, numa cidade chamada São Caetano do Sul. Era um lugar legal para se coletar acontecimentos, mesmo antes do Fantástico fazer uma matéria dizendo que aquela era a melhor cidade do Brasil. Foi em São Caetano, por exemplo, que Clarice conheceu um outro amontoado de átomos mais ou menos coeso chamado Wlamir José. Como a cidade era pequena, vira e mexe eles se esbarravam por aí, chegando inclusive a trabalharem na mesma fábrica. Trabalho é uma religião que enobrece o homem, mas ela é melhor no papel do que na prática.

De volta ao casal: papo vai, papo vem, Clarice e Wlamir José resolveram passar um tempo juntos. No momento da decisão nenhum dos dois sabia disso, mas a união duraria cinco décadas, cinco anos e onze meses. É pouco, se pensarmos no Universo. Mas para pessoas, é bastante tempo. Nesse intervalo, eles fizeram muitas coisas: tomaram banho gelado no inverno de Campos de Jordão; tiveram apartamento na praia; saíram do Estado de São Paulo, depois voltaram; e por aí vai. Outra coisa interessante é que, juntos, eles pegaram mais três amontoadinhos de átomos e também os organizaram em todos temporários mais ou menos coesos. O mais recente desses três amontoados atende até o presente momento pelo nome de Jander.

Quando o amontoadinho Jander saiu de dentro do amontoadão Clarice, ele não sabia fazer muita coisa além de chorar (habilidade que domina com maestria até hoje, no exato instante em que escreve estas linhas). Porém, ele precisava aprender outras coisas se quisesse manter sua coesão por algum tempo. Sabendo disso, ela fez o seu melhor para ensinar um truque ou outro àquele punhado de átomos. Só que dona Clarice não era muito ligada às palavras. Ela sempre foi mais da ação. E mesmo sem dizer uma linha sobre o assunto, só por ter esse jeito de agir ela já ministrou a primeira aula ao amontoadinho caçula: você não é o que você fala, mas o que você faz. Algum outro pensador também disse isso, mas dona Clá dava o exemplo, o que a qualifica como melhor professora. Ao invés de dizer eu te amo, ela fazia o bolo favorito do Jander. Ao invés de falar estou orgulhosa de você, ela preferia comentar cada segundo de cada episódio de cada programa de TV que ele tinha escrito, deixando bem claro que assistira a tudo. E ao invés de falar sinto muito que você esteja passando por isso, ela o abraçava quando ele precisava e o deixava chorar até ele parar.

Teve também uma vez em que o amontoadão ensinou ao amontoadinho uma lição deveras marcante. Ao chegar da pré-escola, Jander encontrou dois potes de sua sobremesa favorita descansando na janela. Exibido, foi mostrar para a vizinha o que ele iria comer logo mais e sem dividir com ninguém. Percebendo ali a chance de transmitir para seu rebento um valioso aprendizado sobre humildade, Clarice tirou os dois potes de sobremesa das mãos do pequeno e os deu de presente para a vizinha. Ali o pequeno Jander entendeu que, no fim das contas, somos todos poeira de estrela e devemos tratar uns aos outros com respeito, sob pena de perdermos nossos doces favoritos.

E não parou por aí. Ao longo de quarenta e um anos, dona Clarice ensinou o filho a fazer divisão com dois números dentro da chave, coisa que ele achava complicadíssima. Também o ensinou a fazer pipoca doce com chocolate sem deixar queimar; a lavar e secar a louça; a passar roupa; a arrumar a cama; a entender que existem várias religiões e nenhuma está cem por cento certa; a ter paciência na hora de cozinhar; a não confiar em qualquer um; a desconfiar de quase todo mundo; a falar pouco e ouvir muito; a prestar atenção no que os outros falam; a prestar atenção no que os outros não falam; a receber bem as visitas; a confortar quem precisa de conforto; e a cuidar de quem precisa de cuidado. Uma mestre versátil, ela.

Dia desses, dona Clá fez uma prova surpresa sobre o último tema: cuidar de quem precisa de cuidado. Tudo aconteceu muito rápido, porque os átomos têm a mania de ficarem mudando ao invés de se manterem para sempre organizados naquele todo coeso que a gente aprendeu a amar. É um péssimo hábito, mas eles fazem isso desde a primeira explosão há bilhões de anos. Então, todos aqueles átomos que ao longo de oitenta anos e mais alguns meses se agruparam num todo coeso chamado Clarice resolveram se transformar de novo. E os amontoados de átomos que conviveram com ela durante todo esse tempo se viram na difícil tarefa de cuidar uns dos outros, porque todos precisavam de cuidado sem a grande mestre para fiscalizar tudo de perto. Eles têm se saído bem, na medida do possível. Mas não recomendo a experiência, porque dói.

Agora, o mais curioso é que, apesar da nuvem cósmica de sentimentos que anda revirando meu peito nos últimos dias, tem horas que me pego pensando: lá atrás, no começo do Universo, era tudo uma coisa só, certo? Sendo assim, ainda hoje nós continuamos sendo esse mesmo todo, só que esparramado por aí. Esse espalhamento dificulta a percepção, por causa do tamanho da coisa e das transformações que nunca param. Então, se no fundo somos o mesmo todo de sempre, dona Clarice ainda está por aqui, mas num formato diferente do que estávamos acostumados. A partir de agora, o jeito é treinar os sentidos e o coração. Com a prática, aposto que vamos reconhecer um átomo dela naquele doce, outro atomozinho ali naquele abraço apertado e mais um acolá, naquela cama arrumada com precisão milimétrica. E, nessa mania de mudar, um dia vamos todos nos misturar de novo. Seguimos juntos, velhinha. De um jeito diferente, mas juntos. Beijo, te amo.

Imagem: Pixabay

Comentários

sergio geia disse…
Que jeito interessante de narrar, Jander, principalmente pela utilização dos conceitos da astronomia. Dona Clarice está aqui, como você disse, também acredito nisso. Bela homenagem.
Cleber disse…
Eu me chamo Cleber e sou o segundo dos três amontoadinhos de átomos que saíram de dentro do amontoadão Clarice.
Já falei isso uma vez e, dadas as circunstâncias e aprendizados, não sei se farei isso muitas outras, mas pelo menos essa ficará registrada: Eu te amo, meu irmão….Eu sou seu fã, meu arquetípico velho sábio, não porque você escreve bem, mas porque é o amontoado de átomo mais brilhante que eu tive a oportunidade de conhecer pessoalmente.
Dito isso, também quero dizer que, com uma inveja fraterna, te admiro muito… provavelmente muito menos do que eu mesmo venha a admitir uma outra oportunidade e também muito menos do que o amontoadão Clarice, mas parafraseando uma frase que aprendi num filme e que, de certo modo, tem tudo a ver com Astronomia: alguns infinitos são maiores que outros.
Nadia Coldebella disse…
Que sensacional ver a vida assim, Jander! Com certeza vc é um amontoado de átomos que D. Clarisse se orgulha! E é tocante ver teu irmão nos comentários.
Guerra disse…
Privilégio que temos na nossa história são estes momentos ... Jander acompanho suas crônicas ofertadas pelo seu irmão Cleber. Parabéns belo, muito obrigado por nos brindar com estas provocações.
Caperutto disse…
Um dia, o meu amontoado de carbono vai dissipar e encontrar os da D. Clarice, e iremos atualizar as fofocas cósmicas...
Daniela Marques disse…
Peço permissão para comentar...Jander e Cleber, D.Clarice certamente está oorgulhosacE Cleber não mentiu, quando, um dia, me disse que vc escreve muito bem! Adorei o texto. Chorei e me emocionei!
Ana Raja disse…
Jander,quanto amor e gratidão há em suas palavras. Emocionante! ❤️
Kah disse…

Obrigada por compartilhar seus vários talentos com a gente.
Ainda procurando palavras pra dizer o que senti lendo, acho que nunca vou encontrar.
Linda homenagem. ❤️
Helena RamosBogo disse…
Que emocionante este amor e gratidao transformados em palavras,
com certeza este amontoadao chamado Clarice continua neste infinito, em voce Jander,
em seus irmaos, em todos que conviveram com ela, assim como D. Luzia continua em meus melhores pensamentos, palavras ou atitudes. obrigada por sua generozidade em compartilhar conosco este momento. Todo carinho.🤗
Obrigada por esse texto tão lindo. Tenho lembranças vividas que levarei comigo pra sempre. Obrigada Dona Clarisse, a senhora mora no meu coração.
Juliana disse…
Jands, que belo texto! Tocante em todos os sentidos. Gostaria muito de ter conhecido Dona Clarisse, e eu teria a certeza de onde veio esse seu coração bondoso e gigante, a personalidade peculiar e a inteligência acima da maioria. O comentário do Cléber também foi muito bonito. Nossos irmãos são os nossos primeiros melhores amigos e ao longo da vida, cada um toma seu rumo, constroem suas famílias, vão morar mais longe, se distanciam… mas eles continuam sendo nossos melhores amigos. E foi bonito ver a admiração e carinho dele por você, mesmo nesse momento tão difícil para ambos. Beijo grande meu amigo!
Que homenagem bonita. E que alegria reconhecer um bocado destes ensinamentos como parte da minha infância, também. Obrigado à Dona Clarice pelo aprendizado e obrigado, Jander, pelo texto. Gratidão.
Carla Dias disse…
Essa é uma das declarações de amor mais lindas que já li, Minesso. Dona Clarice deve estar comentando com as estrelas que ela é a estrela desse pedaço de você que virou escrito. <3
Zoraya Cesar disse…
Jander, nem sei dizer o quão emocionada fiquei com sua declaração de amor. Chorei aqui, porque vc, com suas palavras, lavou meu coração e poetizou as minhas perdas. Sinto muito pela sua e espero, sinceramente, q vc sinta D. Clarice nos cantôes e nos cantinhos do seu universo, ou, como diz Marisa Monte, no seu infinito particular. Muito obrigada por esse texto lindo, emocionante e íntimo.
Anônimo disse…
Maravilhoso o texto e o sentimento fielmente descrito. Com toda certeza, ela sempre estará presente. Muita força pra todos vocês. Sou sua fã Jandi ❤️
Anônimo disse…
Emocionei-me caro Jander. O mito religioso traz conforto, mas o conhecimento também pode fazer o mesmo e, dependendo do caso, pode fazer até melhor porque, afinal, é conhecimento e não ficção. De qualquer modo, uma questão sempre delicada. Belo texto.
Anônimo disse…
Emocionei-me caro Jander. O mito religioso traz conforto, mas o conhecimento também pode fazer o mesmo e, dependendo do caso, pode fazer até melhor porque, afinal, é conhecimento e não ficção. De qualquer modo, uma questão sempre delicada. Belo texto. André Ferrer aqui.

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