SONHAR O PAI >> Ana Raja


Meu pai andava invadindo meus sonhos.

Eu acordava durante a noite, sem a clareza das imagens que acabara de viver. Não identificava suas palavras, legendas borradas na minha retina. Sonhar com alguém que já morreu, para alguns significa receber uma mensagem cifrada. Às vezes, o sonho é tão claro que é possível entender o recado.

Eu queria entender o recado de meu pai.

Nem sei se acredito nessa possibilidade, ou se é apenas a saudade pedindo abraço. Mas depois de noites navegando em sonhos indecifráveis, resolvi rezar um Pai-Nosso. Meio dormindo, meio rezando, lembrei de um texto escrito por mim, dedicado a ele, inspirado em uma experiência que tive bem acordada. No dia seguinte, saí a procura do texto nos meus arquivos. 

Nem sempre encontrar significa reencontrar. 

Faz alguns dias que não sonho meu pai. Desejei tanto escutar sua voz, que o imaginei cantando a música da Kombi queimada na beira da estrada*. É bom sonhar o meu pai. 

O texto, compartilho agora com vocês.


Hoje provei um doce com gosto de pai. Um sabor que me encheu a alma de ternura. Talvez não consiga explicar a sensação da presença que foi tomando conta do meu ser. Não a física. Algo muito maior. 

Ao colocar o doce de goiaba na boca, senti a textura firme e saudosa a enviar-me emoções que só sendo filha de meu pai pude experimentar. Fechei lentamente os olhos e viajei para um passado não muito distante, de tempo findado, acabado, terminado.

Conforme saboreava a iguaria, percebia que não eram apenas lembranças me visitando. Nem a gargalhada no meio de uma brincadeira, nem o passeio de mãos dadas pelas ruas da cidade. Não eram as palavras rabiscadas em um versinho feito para mim, nem a alegria depois de uma piada. Não era o som de um beijo estalado nas mãos pedindo benção, nem os causos contados na varanda de casa. Eu não queria abrir os olhos, por isso a saudade fez morada no meu peito.

Um doce com gosto de pai é a certeza de que tudo ficará bem. 


Seria esse o recado?


*Canção que meu pai compôs e costumava cantar para mim.


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anaraja.com.br
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Comentários

Soraya Jordão disse…
O amor profundo transcende a barreira da finitude. Lindo texto. Uma prece ao amor.
Jander Minesso disse…
Chorei, né? Talvez pelo meu passado recente, mas sem dúvida pelo jeito como você pintou um momento tão íntimo e ao mesmo tempo tão universal. Lindo. Obrigado, Ana.
Zoraya Cesar disse…
Ana, vc, sem querer, me deu um presente. Tenho pensando tanto no meu pai (já faz 2 anos, meu Deus!), que acho, que, de certa forma, ele falou comigo por seu texto. Me deu uma mistura de dor de saudade com alegria pelo recado. Uma mensagem com gosto de pai é a certeza de que ELE está bem. Muito obrigada!
Nadia Coldebella disse…
Não tem como preencher essa saudade, né? A gente só se acostuma. Mas o cheiro, o gosto, o toque trazem a presença de quem amamos de uma forma mais intensa do que lembrar. É um jeito que envolve a gente... Que bom que vc achou o seu jeito! Texto lindo lindo!
Ah me reconheci tanto no seu texto… eu vivo buscando minha mãe, nos sonhos, sinais, coincidências da vida… ultimamente sinto a presença dela pertinho de mim, me dando apoio e consolo. A dor passa, a saudade não… obrigada por este lindo texto!
sergio geia disse…
Que delicadeza de crônica, Ana. Amo essas delicadezas.

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