GERAÇÃO X >> Sergio Geia

 


Era um dia comum de trabalho na Secretaria. 
 
O silêncio de uma tarde chuvosa só era afrouxado pelo ruído de muitos dedos nervosos que, tal qual a um piano, tocavam as teclas de computador. De repente, rompendo a paz quieta, o Rei. Mudo até então, o rádio ampliou a voz conhecida: 
 
Eu quero apenas olhar os campos. Eu quero apenas cantar meu canto. Eu só não quero cantar sozinho. Eu quero um coro de passarinhos. 
 
Helania foi a primeira. Disse que o pai trabalhou na Philips. Certa vez, trouxe pra casa um estojo com uma coleção de fitas K7 do Roberto Carlos, ele tinha acabado de comprar. Às vezes, a fita magnética enrolava no toca-fitas. Era preciso habilidade para o conserto evitando a perda total. Uma caneta Bic sempre ajudava. 
 
E quando queríamos gravar a música que tocava na rádio? Era a chance de criar a nossa playlist na fita comprada virgem. Ficávamos horas esperando a música tocar. Sem paciência, mudávamos de estação. Não raro o cara da rádio estragava tudo, pois falava antes da música terminar. 
 
Patrícia lembrou de como era difícil na K7 encontrar a música que desejava. Tinha que correr pra frente, daí passava a música, tinha que voltar, era um perrengue, algo superartesanal. E quando veio o CD? Uma revolução. Som de altíssima qualidade, limpo, sem os velhos chiados de antes. Muitos se desfizeram de seus discos e fitas, Renato foi um. 
 
Edna lembrou dos videocassetes, das locadoras de vídeo, cada bairro da cidade tinha pelo menos uma. Virou febre. Era possível assistir a um filme em casa, quando quisesse, na hora que quisesse. E quando fosse devolver a fita VHS tinha que rebobinar, se não, pagava multa. 
 
Marcia contou que certa vez seu cunhado passou uma saia justa na locadora. Estava olhando os filmes quando viu o casal chegar. Em certo momento, o homem se afastou da mulher que distraída não percebeu. Logo depois ela falou baixinho para o seu cunhado: 
 
— Então, bem, o que você acha de a gente pegar um pornozinho hoje à noite? 
 
Quando percebeu que o bem ao seu lado não era o seu marido, mas o cunhado da Marcia, quase morreu de vergonha, mil desculpas e perna pra quem tem. 
 
A conversa foi rolando assim, K7, VHS, CD, vinil, três em um, locadoras, pornôs, foi parar até no tio da Sukita. 
 
Em certo momento olhamos com pena para a estagiária, 22 aninhos, geração Z, que devia estar achando aquele papo muito estranho. 
 
Alguém perguntou:
 
— Você entendeu alguma coisa, Nátally? 
 
Ela olhou com muitas dúvidas. 
 
Outro completou:
 
— Não caiu a ficha, né? 
 
A expressão “caiu a ficha” Nátally até conhecia, mas não sabia a origem. 
 
Lá fomos nós explicar sobre o funcionamento dos orelhões da Telesp. 
 
 
Ilustração: Pixabay
 
 


 

Comentários

Jander Minesso disse…
Você fala do meu povo, Sérgio. Cara, quanta saudade boa num texto só. Inclusive, tinha uma locadora do lado de casa muito engraçada: ao invés da caixinha do filme, eles tinham uns painéis pendurados na parede onde deixavam várias fichinhas de cartolina com o nome e a sinopse do dito cujo datilografadas. A mesma coisa para os joguinhos de Atari e Odyssey. Que época. Obrigado pela viagem no tempo, meu amigo: deu um quentinho bom nesse coração combalido de meia idade aqui.
Darci Siqueira disse…
Você reportou sua própria vida, já te assisti muitas vezes gravando no seu aparelho 3 em 1, hoje a juventude ouve o que nós vivíamos, parabéns, crônica show.
Ana Raja disse…
Sérgio,que viagem boa!
Eu fazia a minha playlist de madrugada. O locutor nesse horário era mais silencioso.
Pollyana Gama disse…
Boa!! E o que dizer das vezes que esquecíamos de devolver as fitas na locadora e a multa pesada?! Lembrei de quando ganhei uma fita do RPM no amigo secreto da escola. Deliramos!
Zoraya Cesar disse…
Ahhhh, 'saudade não tem idade', programa do Alberto Brizola na radio Mundial. Meu Deus, que saudadeeeeee de uma locadora! E a gente gravando a música e o bendito locutor falava no meio? E qdo tocava a música q vc amava e o cara nao dava o nome? Enrolar a fita cassete com caneta.
Sergio, Fofucho, vc pegou pesado, hein? Delícia!
Nadia Coldebella disse…
Ler esse tipo de crõnica me dá uma dimensão de como estou envelhecendo. Não dá pra negar que os anos oitenta e noventa foram os mais legais, e que de lá pra cá foi quase que uma transição de uma dimensão para outra.

Em 1987 minha mãe cortou minha enorme franja a là Chitãozinho, kkkk. Minha franja era privilegiada, ficava arrepiada sem esforço. Tenho muitos traumas dessa época...

Em 1993 eu já amava o rock e gravei uma fita k7 inteirinha com Patience, do Guns n' Rose, que ficava ouvindo o dia todo. Eu e meus amigos ligávamos com o nosso telefone fixo durante todo um final de semana para a única FM da cidade, para garantir que a música seria repetida vezes o suficiente para encher a fita. Imediatamente depois embarquei num Black Sabath, mas durou só um dia. Não dei conta das musicas, agressivas demais pra mim.

Nesse mesmo ano eu ganhei uma fita k7 do Roxete de um namoradinho, que ouvi um monte e depois dei pra outro carinha que eu estava a fim. O carinha deu a fita pra uma guriazinha que ele estava a fim também! kkkk.

Hahaha, em 1994 eu e uns amigos nos vestimos de preto, acendemos um monte de velas numa noite cheia de estrelas. Era 21 de agosto de 1994 e a gente ficou até altas horas ouvido fitas k7 do Raul Seixas, em honra dos cinco anos de sua morte!

Ai fui pra faculdade e dancei muito pagode...kkkk

Eu conheci um carinha numa videolocadora, em 2002, cinéfilo que nem eu. Ele locou o pior filme da minha vida e me chamou pra assistir. Eu fui e depois tive que rebobinar a fita. Hahaha, casei com ele.

Eu orgulhosamente posso dizer "no meu tempo...". Obrigada, Serginho!
sergio geia disse…
Querias e queridos, quantas histórias bacanas. Eu que agradeço pelos comentários.

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