AURORA SOBREVIVENTE >> Ana Raja


Cientificado de seus direitos e garantias constitucionais, dentre os quais, o respeito a sua integridade física e moral, o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada assistência da família e do advogado, interrogado pela Autoridade Policial, nos termos do Art. 187 do Código de Processo Penal:

 

Era uma quarta-feira. Para a menina que mora com os pais e os irmãos, e estuda em uma escola estadual, no próprio bairro, era um dia como outro qualquer.

Acredito que nós — que respeitamos a nossa vida e a do outro — somos capazes de imaginar a rotina de uma menina de doze anos de idade, até porque, muitos dos que agora leem esse texto convivem com uma.

Aurora significa “o nascer do sol”, “o raiar do dia”, “aquela que brilha”. É o nome que escolhi para contar sobre algumas horas vividas por essa menina. 

Céu limpo, tão azul, dos que remetem à total ausência de mácula. Em um dos meus escritos, a personagem usa um vestido azul que a deixa invisível. Desaparecer, diante dos olhos dos outros, não é uma coisa boa. Talvez Aurora usasse um uniforme de cor azul, ou o céu de anil a escondeu dos olhos de Deus.

Ele escolheu permanecer calado.

Foi abordada na rua quando seguia para a escola. Um homem a segurou e a empurrou para dentro de um carro.

No banco de trás, a parceira dele, a cúmplice, dopou Aurora com um lenço encharcado em uma substância que a fez desmaiar. A mulher tinha em seus braços uma cópia do que havia sido há apenas alguns anos. Quem foi essa mulher aos doze anos? Quais lembranças desastrosas guarda em sua memória? A menina estava deitada com a cabeça em seu colo, sem defesa, desfalecida. O carro avançava pelas ruas, e ela, a mulher, durante poucos minutos, teve a chance de salvar Aurora... talvez até a si mesma. Se o fizesse, de acordo com sua crença, um lugar no reino dos céus estaria garantido. Ouvia a pregação nos cultos que frequentava. Está exposto nas suas redes sociais que é temente a Jesus. Na foto de perfil, a frase que acompanha a imagem distorcida é “caminhar pelas veredas do Senhor para que mal nenhum lhe atinja, amém”.

Escolheu permanecer calada.

A participação da mulher termina em uma esquina. A partir dali, o homem segue com o plano. 

Aurora, inconsciente, é colocada em uma mala. Seu corpo segue o destino traçado por um homem-monstro.

Ele mora em um prédio no terceiro andar. Não há elevador. Sobe as escadas arrastando a mala até seu apartamento. Entra e fecha a porta. Deixa do lado de fora a esperança de Aurora. As imagens foram captadas por câmeras nas ruas e nos corredores do prédio onde a menina foi encontrada. O que aconteceu, dentro do apartamento, virou manchete. Uma escuridão tomou conta dessas loucas e angustiantes horas, até que a polícia chegasse ao endereço, identificado por meio da placa do carro. Será que Aurora gritou pelos pais? Perguntou o que fazia ali? Pediu para que a deixasse ir embora? Nas redes sociais do homem-monstro, postagens de viagens, receitas culinárias, posicionamento político, dicas de livros, fotos com familiares e um apelo divulgado ostensivamente: “Pedofilia é crime. Denuncie”. Salve, a ironia.

Escolheu permanecer calado.

Aurora foi encontrada com os pés algemados, deitada na cama. Disse aos policiais que os seus braços doíam muito e queria ir para casa. 

A-U-R-O-R-A.

Soletro esse nome para todas as meninas que tiveram suas vidas suspensas por atos cometidos por abusadores. Eles agem de diversas formas, estão em todos os lugares. 

O meu desejo é que elas recebam a graça de renascer, de raiar num novo tempo e brilhar em sua plenitude. Auroras sobreviventes.

Escolheram permanecer calados. A justiça gritou.


Imagem © Ajay kumar Singh, por Pixabay

anaraja.com.br

Comentários

sergio geia disse…
Você definiu bem esse "homem": monstro. E são muitos espalhados por aí com cara de anjo. Parabéns pelo texto.
Jander Minesso disse…
Embrulha o estômago pensar que cenas como a que você narrou ainda aconteçam. Será que um dia vamos ficar em paz, livres desses monstros?
Apesar da dor, da raiva e do medo, mais um ótimo texto, Ana.
O "homem-monstro" não são aqueles que estão longe, mas infelizmente aqueles que fazem parte do nosso cotidiano. Mais uma vez você traz um assunto doloroso da sociedade de uma forma brilhante.
Zoraya Cesar disse…
O maior monstro é o q permanece calado. Respondendo à pergunta do Jander, infelizmente creio q sim, os monstros que agem e os que se falam convivem entre nós desde que o primeiro primata ficou ereto. Ana, vc pegou uma notícia que sempre nos embrulha o estômago e transformou num texto além da notícia, de modo brilhante.
Soraya Jordão disse…
Sempre tocante. Palavras talhadas na denúncia e na sensibilidade a dor de tantas de nós.
Carla Dias disse…
Ah, Ana, essa sua facilidade em fazer-nos ler a dor como se ela fosse o belo.
whisner disse…
Contundente. Parabéns.

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