MINHA FAMÍLIA SE DESPEDAÇOU EM 8 DE JANEIRO DE 23 >> Sergio Geia
Num Brasil estranhamente dividido, esta história é igual a de muitas outras famílias que mantêm um grupo no WhatsApp, contada sob a óptica de um pai. Pode ser igual à sua, a de seu amigo ou vizinho. Portanto, nada do que direi aqui será novidade. Só que eu precisava dizer. Aliás, preciso. Meus sentimentos se tornam mais claros ao esforço de transpô-los em palavras (2). E também porque não bastou o pouco que disse. É preciso mais. Pelo meu bem.
De maioria bolsonarista, aliás, minha cidade conservadora inflou Bolsonaro com o dobro de votos dados a Lula na última eleição, normalmente as postagens no grupo da família, as de teor político, tinham conteúdo falso; nenhuma novidade. Eu engolia o sapo. Engoli muitas vezes. Às vezes, não dava. E aí o pau comia. Vinham os panos quentes. Geralmente encerrava minha fala dizendo que ali não era o lugar, pela existência do grupo, quiçá, da família.
Eu me posicionava em minhas redes, mas respeitava aquele espaço e no grupo não fazia postagens ou dava opiniões de cunho político. Mas eles não. Eram postagens compartilhadas aos borbotões, de fontes suspeitas, a maioria um suco de mentiras. Aos poucos, nós, a minoria de esquerda, fomos cansando de tudo aquilo e saindo. Mas ela preferiu continuar porque seu coração dizia que embora em minoria na esfera política, aquela era a sua família, o seu lugar, e aquele espaço, embora virtual, embora politicamente insalubre, também lhe pertencia: era a velha sensação de pertencimento.
Então veio o 8 de janeiro. Quando a loucura atingia o ápice, inclusive no grupo, claro, ela postou:
Bolsonaristas destruindo o patrimônio público, credo.
Alguma mentira?
Mas eles reagiram. Arrepiados com o posicionamento daquela menina atrevida que não sabia nada da vida, eles deletaram seu nome do grupo, numa clara demonstração de força; nos bastidores, rolou até reunião para deliberarem a expulsão e ofensas pessoais e graves.
Pode parecer banal, bobo, bobagem, mas desculpa, não é. Em razão de alguns pontos.
É preciso distinguir um grupo de direita, bolsonarista, de um grupo da família. Um é fechado, participando dele apenas quem comunga daquela ideologia. O outro é mais amplo, democrático, devendo absorver todos, todas e todes, e suas ideologias, assim como acontece na vida real. Ou num almoço de domingo uma opinião pode significar exclusão? Numa família saudável, eu disse saudável, ninguém é expulso do convívio porque pensa diferente. Podem brigar, discutir, xingar. Mas o ponto é que ali o grupo era da família, não de bolsominions.
O uso da força é bem típico de reacionários que não aceitam a derrota e tentam derrubar um governo tomando de assalto Brasília. Aqui, a força é no whats. Pensou diferente? Cala a boca! Não calou? Fora! Me veio à mente o cala boca de Bolsonaro à Laurene Santos, da TV Vanguarda, em Guaratinguetá. Nada mais autoritário, machista, sexista e misógino que suas respostas às jornalistas mulheres. Eu via uma semente do autoritarismo bolsonarista brotando no grupo: parecia o próprio dizendo aqui quem manda sou eu.
O que fica mesmo e que dói mais é a simbologia da expulsão, a sensação de que você não é benquisto na sua própria família. Não se expulsa ninguém de um grupo de whats. Se a pessoa quer sair, tudo bem, é seu direito. Mas ninguém tem o direito de expulsar alguém do grupo porque pensa diferente. E não tem o direito porque ninguém é proprietário do grupo.
A doença se espalhou num nível tal que não enxergam os milhares de postagens enviesadas que fizeram nos últimos anos. E continuaram cegos quando ela disse uma verdade (Bolsonaristas destruindo o patrimônio público, credo), quando todo mundo não forjado em mentiras das mídias fascistóides enxergavam a verdade; não conseguem reconhecer o engodo em que se meteram.
Minha família sempre foi unida, alegre e festiva, e sempre foi bom o convívio entre nós. As brigas aconteciam, mas tudo se resolvia com amor e diálogo. Hoje, no entanto, contaminada por esse vírus que assola o Brasil, ela está doente. No grupo, ao qual não pertenço mais, eles têm o costume de rezar pelas pessoas doentes, todos os dias. Talvez seja o caso de incluir na oração a própria família. A doença é de alma, e talvez só um milagre seja suficiente para evitar o fim.
P.S.: 1. Meu apoio amoroso à Chiara por sua força, lucidez e posicionamento político. 2. “Minhas intuições se tornam mais claras ao esforço de transpô-las em palavras”, Aventura, crônica de Clarice Lispector, pg.247, Clarice Lispector – Todas as Crônicas. 3. Ilustração: Pixabay
Comentários
Mas sabe, comecei a pensar se parente é familia, porque é como vc disse, na família tem amor e o afeto harmoniza as brigas. No meu caso, foi quebrado alguma coisa, senti o dano como irreparável naquele grupo em que só os laços de sangue pareciam definir quem éramos.
São os ônus do bolsonarismo, mas sabe de uma coisa? Me fizeram um favor, melhor saber onde se pisa do que viver estressada com tanta abobrinha ilógica postada em grupo de família. Uma pena que as coisas tenham se misturado, sendo necessário, pra conviver em grupos de whatsapp, calar ou mentir.
Diz pra Chiara que ela tem meu apoio. Ela não perdeu a família, aqueles que a amam, só se afastou de alguns parentes. E manteve a si mesma.
Um grande abraço e muito obrigada pelo texto .
Quando não é por política, é por partilha!
Triste realidade.