DESCONFORTE-ME >> Carla Dias


Sinto muito, mas hoje não posso. Por mais que me apeteça esmiuçar mágoas — há quem diga que sou boa nisso por causa do signo —, hoje prefiro escutar a chuva a tocar sua música na janela. Quem sabe até encontrar um pouco de paz naquela canção.

Lembra qual?

Ontem eu tentei criar uma canção. Não é a primeira vez, aposto que nem será a última, até porque tentar me faz sentir capaz, e disso eu gosto assumido. Você se sente assim? Capaz porque tenta? 

Tem aquilo que desejaremos fazer durante a vida toda, mas nunca faremos e sabemos disso. Mas desejar é bom, dá conforto. Para os interessados em se aprofundar na filosofia do desejo vão, também dá incômodo. Acontece de eu lamentar ser da laia dos que aceitam que o desconforto pode ser bem proveitoso, porque há dias em que preciso de leveza, não de sentimento escandaloso sambando na minha alma.

Eu aceito o desconforto, se ele me ajudar a olhar para a minha história com mais apreço, a desembaraçar os devaneios — jamais descartá-los. Se for assim, venha, meu caro, desconforte-me. Tire tudo lugar, arranhe a superfície da segurança, reverbere a novidade do desapego ao óbvio de mim. Quebre os mil silêncios criados pelo acúmulo de vezes em que eu deveria ter dito e me calei.

Calar-se diante, da necessidade de dizer, é se esconder de si mesmo. 

Não hoje, porque estou de chuva. Dizem que ela vem e acaba com tudo, desabriga, abate, debela. Eu acredito que ela chega como é da natureza dela chegar, mas não encontra lugar para ser chuva. E tem de lidar com desvios, esparramar-se no concreto, virar poça nos tetos dos prédios e dilúvio nas salas de estar das casas; manchetes de assombrar e aumentar audiência. 

Hoje ela me chega música. 

E me faz sentir inspirada também, nem sempre para realizar algo fantástico. Há quando me sinto feliz por ter sido inspirada a sair de casa, a dar uma volta pelo bairro, ou a ticar uma lista do que tinha de fazer e fiz.

O que você tem de fazer e ainda não fez?


Imagem © Souvick Ghosh de Pixabay

Comentários

Nadia Coldebella disse…
Carla querida,

Chuva é esse seu texto: uma delícia de ler (ouvir), a gente vai se embalando, no ritmo cadenciado que vc coloca. E semelhante a chuva, ficar exposto as palavras por mais tempo do que manda a cautela em se tratando dos seus textos, causa desconforto, incômodo até. Mas é omo vc diz: desconforte-me.

Seu texto-chuva é pura canção!
Gde bjo!
branco disse…
hey carlinha, como é bom te ler, como é especial saber que ainda existem pessoas que deixam a chuva ser apenas chuva e você, sendo uma delas, o faz de maneira umidamente bela.
Albir disse…
O texto da Carla e o comentário do branco me lembraram um poema do Bandeira sobre a lua. Não a dos namorados, dos sonhadores, dos lunáticos, mas lua apenas satélite.
Zoraya Cesar disse…
Eu acredito que ela chega como é da natureza dela chegar, mas não encontra lugar para ser chuva. E a continuação de todo esse parágrafo. Que beleza de beleza de beleza. Um 'daqueles' textos da Princesa da Palavra.

Chuva. Sempre gostei. Sempre me desperta sentimentos bons. Amo o som dela tamborilando no capô de um carro, nos vidros da janela, pedindo para entrar.

"Hoje ela me chega música. ". Sem comentários. Uma frase que se desdobra em mil e se basta.

E, como nao podia deixar de ser, a pergunta que penetra na nossa alma, nao sem alguma dor: o q vc tem de fazer e ainda não fez? Se bem q pensar nela pode nos dar um alento e um novo rumo na vida. Melhor q pensar o que poderíamos ter feito e agora nao tem mais como fazer.

Belo belo belo, Princesa das Palavras.
Anônimo disse…
O desconforto é o que sinaliza o estar vivo. Sentir-se capaz nasce da tentativa. O marco zero de tudo é amedrontador e causa desconforto. A natureza do nada, passando por todos os sentidos, é o início de qualquer coisa. André Ferrer por aqui.

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