INVASÃO DE PRIVACIDADE >> Ana Raja
Jejum de doze horas, fila de espera, senha: normal, pendência, resultados, preferencial. Crianças chorando agarradas aos pais, o palhaço contratado para distraí-las não consegue cumprir o seu papel, mas ele tenta. Enquanto espero, penso no que elas têm a revelar.
Acho que ouvi o meu nome. O enfermeiro o repete, dessa vez dois tons acima. É minha vez.
Oito tubos etiquetados com o meu nome, data de nascimento, RG e CPF em letras minúsculas. Por favor, pode conferir os seus dados? Finjo que consigo ler as letras amontoadas e digo que está tudo certo.
Agulha descartável, senhor! Mas não é o mínimo que se espera de um laboratório? Só penso, não digo. O garrote no braço, uma batidinha na veia para ela acordar, a agulha em seu trajeto nada agradável, algodão e curativo adesivo redondo para finalizar. O rapaz cumpre o seu trabalho com um sorriso treinado, me deseja um excelente dia e espera que Deus me acompanhe: Senhor, na saída tome um cafezinho com pão de queijo. Saio sem olhar para trás e em segundos atravesso a rua até o ponto de ônibus, rumo ao café da manhã da minha casa.
No mínimo dois dias para os resultados apontarem na tela do computador. Não confiro, apenas imprimo, coloco num envelope e lacro. Deixo para a médica resolver isso, afinal ela estudou por anos para sentar na minha frente e dizer um tanto de coisas indiscretas a meu respeito.
Haja paciência!
A consulta, para variar, é encaixe. Passo horas aguardando e observando a feição das pessoas, antes e depois do encontro com um dos médicos espalhados nas três salas do corredor cinza – difícil encontrar alegria na recepção.
Tomo água, café, capuccino, sento e levanto. Olho para o celular, ameaço abrir os envelopes dos exames fofoqueiros, desisto e caminho até o banheiro. Fico ali, sentado no vaso, só sentado. Penso no tempo perdido e nas coisas boas que aconteceriam se eu estivesse em meu lar. Alguém bate na porta e diz que precisa entrar com urgência. Que saco! – só penso, não digo.
Finalmente, a minha vez.
Abro um meio sorriso para aquela mulher de branco, que me cumprimenta com um abraço e já vai perguntando sobre os exames.
Tudo aí, Antônio? Você está corado, bom sinal. Isso significa que os exames acompanham a sua cor.
Ela abre o envelope.
Fico nervoso com o silêncio que toma a sala. Ela... lê os papéis, anota e olha para mim. Vou me encolhendo devagar na cadeira. Algumas anotações a mais, e então, me encara. Parece cartomante nas adivinhações.
Tem saído pouco, Antônio? Não tem tomado muito sol, né? E a comida, ifood gorduroso?
Ela vai insinuando conforme confere os resultados.
Anda ansioso? Alguns docinhos com efeito ansiolítico? Aos domingo à noite, ainda coloca em prática as receitas de pizzas do caderninho da sua avó? Antônio, o cabelo tem caído além do normal no banho?
Eu fico possesso com tanta invasão.
Poucas verduras de cor escura... E o xixi, Antônio? Por que não fez o exame de urina?
Não tô acreditando nisso! Ela acha que é fácil mijar naquele pote?!
Você está me ouvindo, Antônio? Compreende o que estou dizendo? Antônio... Antônio...
Moro sozinho, ninguém sabe da minha rotina, dos meus hábitos e basta chegar aqui, ela desvenda tudo... em voz alta.
Ah, Antônio, todo ano é a mesma coisa: vitamina D baixa, colesterol nas alturas... Você não para de comer doces, se entope de carboidrato. Tá tudo aqui, os exames não mentem! Por que você acha que seus cabelos estão caindo? A sua tireoide está descontrolada!
Descontrolada tá ela!
Olha, Antônio, depois desses anos todos lidando com você, não quero mais vê-lo.
Vai me deixar livre? Pra ser quem eu sou?
Se for pra continuar sendo quem você é, não precisa mais aparecer aqui para me ver. Chega!
Seu desejo é uma ordem.
***
Hei, rapaz, essa fornada de sonho tá fresca? Quero dois!
O que ela esperava de mim? Achou mesmo que fosse me domesticar? Agora sou um homem livre! Cadê? Cadê? Não tá no meu bolso... Poxa! Esqueci de pegar a guia para os exames da próxima consulta.
Imagem por Pixabay
anaraja.com.br
Comentários
Adorei.
Bjuss