OS CORAÇÕES DE ANA MARIA >> Albir José Inácio da Silva

 

                                                  

Eu queria saber onde está Ana Maria. Sou seu sucessor na propriedade de um bem que adquiri nos anos setenta. Ela, por sua vez, o comprou em 1969, quando estava no último ano do curso ginasial e devia ter 14 anos.

 

No ano seguinte ela cursaria o científico ou o clássico e seu coração provavelmente acelerava com essa ideia: garotos mais adultos e não o idiota cuja inicial dentro de corações ela tinha riscado, quase rasgando a página do livro.

 

Mas nem tudo eram flores enquanto Ana Maria desenhava e riscava corações. O ano letivo começava sob o tacão do AI-5, baixado em dezembro último pela ditadura instalada no poder desde 1964. Nos anos seguintes, muitos estudantes sonhadores como Ana Maria seriam presos, torturados e mortos. Por isso me pergunto agora, onde andará Ana Maria?

 

Assim como eu, ela gostava de ler porque, além de corações mantidos ou riscados, sublinhou trechos e fez anotações nas margens, suponho, resultado dos comentários do professor durante todo o ano. Aliás, Professora Fátima, que também ganhou coraçõezinhos no nome escrito ao lado da matéria Português IV.

 

Ou seja, além do garoto idiota cujo coração foi riscado, Ana Maria amava a professora, os Beatles, os Rolling Stones e provavelmente o Wanderley Cardoso.

 

Mas os amores também podiam ser perigosos naqueles tempos em que o feminismo era ridicularizado e o assassinato de mulheres pelos maridos era justificado pela legítima defesa da honra. Tomara que Ana Maria não tenha sido uma das vítimas.

 

Outro perigo naqueles anos dourados, rebeldes e de chumbo, eram as drogas. Elas arrastavam jovens de mochila nas costas - desencantados com o mundo das bombas sobre as aldeias do Vietnã ou com a hipocrisia da família judaico-cristã - numa viagem só de ida. Espero que Ana Maria não tenha embarcado nessa.

 

Então pode ser que ela tenha quase setenta anos, filhos e netos, e olhe enternecida e nostálgica pra menina que terminava o ginasial naquele 1969. Talvez acumulou frustrações, alegrias e tristezas, ou seja, viveu. Vive.

 

Eu não tenho como achar Ana Maria. Só tenho o exemplar de uma antologia de contos, que comprei no início dos anos setenta, numa calçada forrada de plástico azul e com o preço em cruzeiros novos escrito a lápis no alto da primeira página.

 

E mais abaixo, com letra caprichosa e caneta verde, a declaração de propriedade:

 

              Pertence a Ana Maria – turma 401 - Março de 1969

                    Português IV – Professora Fátima 💗💗💗

 

Nunca ousei riscar seu nome e colocar o meu, como era costume. Tenho certeza de que ela possuiu melhor que eu esse bem. Sua marca vai ficar ali enquanto o livro existir. Talvez até depois de mim e de Ana Maria.

Comentários

Ana Raja disse…
Que lindo, Albir! Consegui imaginar a letra caprichosa de Ana Maria. Acredito que ela esteja bem.
Nadia Coldebella disse…
As vezes, qdo eu compro um livro num sebo e encontro o nome de alguém, tbm fico pensando onde andaria essa pessoa, do que ela gostava...
É uma história muito sensível e humana, dessas lindas que vc escreve.

Já te disse que vc tem um jeito muito especial de humanizar seus personagens e, consequentemente, de nos "re-humanizar" tbm?

Gde bjo
Zoraya Cesar disse…
Dom Albir mostrando toda sua nobreza e sensibilidade numa crônica doce. Espero que esse texto, de alguma forma, encontre Ana Maria. E a encontre feliz. E faça seus olhos brilharem.
Anônimo disse…
Adoro essa Paleontologia dos sebos. Lindo texto! Aqui é o André Ferrer.
Albir disse…
Obrigado, Ana, Nádia, Zoraya e André, pela generosidade de seus comentários.

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