PERFORMANCE >> Carla Dias
Não sabe quando foi a última vez que alguém olhou para ele.
Na verdade, durações chegam nubladas à sua percepção. O barulho da máquina avisa que é hora de adequar a aparência. O assistente pede ao seu assistente que ajude com o corte. Ele acredita que precisa de ajuda, não importa quão simples seja tarefa a ser executada.
Vê seus cabelos caídos no chão e se emociona. Não sabe dizer quando foi a última vez que olhou para eles. O assistente do assistente chacoalha a máquina, ele sabe porque reconhece o barulho. Já o escutou quando não era ele sentado naquela cadeira. Acata à ordem não verbalizada para que pare de mexer a cabeça.
Pensa em quando eram três dividindo um cômodo. Cabia tanta vida naquele lugar, apesar de viverem em um espaço limitador de caminhadas. Então, o mais velho sentiu as pernas falharem em um tombo. Depois, entregou-se à inércia. Movimentar-se para quê? Assim, o mínimo se tornou nada, e logo, ausência.
Esse é o desejo que nutre no momento: que suas pernas aguentem a caminhada.
O assistente coloca em seu colo uma bacia de louça. Seu olhar se entrega à beleza da peça e a pintura floral o suaviza por dentro, mas as mãos continuam a tremer, não sabe se por fragilidade física ou temor, não sabe mais diferenciar.
O assistente do assistente se aloja em uma cadeira em frente a ele, que não desvia o olhar das flores, porque sabe o quanto isso lhe custaria. O outro puxa suas mãos, com a violência dos que executam qualquer tarefa, sem se preocupar com as consequências. Começa a esfregá-las, até ficarem no tom do vermelho das flores pinceladas na bacia.
A mais jovem tinha espírito voraz. Gostava das palavras pronunciadas, desesperava-se com o silêncio exigido. Passavam horas a conversar, cobertores sobre suas cabeças, abafando as raras vezes em que gargalhavam em uníssono. Apreciava essa sintonia comprazida. No entanto, com a mesma intensidade que se entregava à vida, ela se lançou ao fim e se rendeu ao silêncio.
Então, ela não estava mais lá.
Tornou-se único, o recipiente da ausência deles. Evita as lembranças felizes, insistentes sobreviventes que costumam levá-lo do raro consolo ao desolamento com a mesma intensidade. Único, por teimosia de ser até o fim que jamais seria de sua escolha.
Escutou o assistente dizer que a casa está cheia, muitas pessoas interessadas em escutá-lo. Em outro momento, esta seria uma notícia de deixá-lo em êxtase. Pedem que se levante. Emociona-se ao sentir a delicadeza do tecido tocar sua pele, enquanto o vestem, porque não tem forças para fazê-lo sozinho. Eles sabem disso, concordam com isso.
O chapéu na cabeça e está pronto.
O assistente insiste em dizer que ele precisa ficar em pé ao menos durante a apresentação. Não consegue evitar de pensar sobre qual seria a sua punição se ele caísse no meio da música. No entanto, decidiu resistir em vez de sucumbir, em homenagem aos seus amigos.
Não sabe desde quando resiste, já que há muito não coloca os olhos em um calendário.
Antes, se apresentava em teatros lotados, agradecido pela oportunidade de cantar para tantas pessoas. Agora, prepara-se para uma plateia de indivíduos que desejam apenas se divertir, apostando se ele terminará a performance ou não.
Há muito tempo não come o suficiente, bebe raramente, não dorme sem ser acordado com alguma violência física. Que não é tratado como ser humano, mas um enjaulado pela mediocridade de uma humanidade soterrada pelo profano da sua existência.
Entra na sala, suas pernas o aguentam. Apoia-se na parede e solta a voz.
Há muito tempo não soltava a voz.
Imagem © cdd20 por Pixabay
Comentários
Carla, minha sorte, grande, grande, foi não ter lido esse num domingo à tarde. Não sei se ia aguentar tanta tristeza. Que BELÍSSIMO TEXTO ARRASADOR. de uma pungência, de uma humanidade, de um abismo... Clássico, clássico, clássico. Das coisas extraordinárias q vc escreve, esse é dos mil que se destacam.