O ABREVIADOR >> Carla Dias

Imagem © Willgard Krause por Pixabay

A idade ele não abreviou, ainda assim, acredita que ela se antecedeu por conta, que pulou etapas, engoliu parte de sua história. Não que seja um reclamador contumaz do caminho natural da vida. Não teme nem se apega ao que a maioria lamenta no envelhecer. Na verdade, sente-se curioso sobre como será a pessoa que se tornará ao ver seu corpo se negar a executar alguma tarefa, inclusive interna. Lerá mais livros de ficção? Finalmente aprenderá a nadar e mergulhará, considerando limites impostos pelo corpo, no rio lá do sítio? Relaxará a ponto de sorrir só porque o pôr do sol lhe parece o mais espetacular que já viu?

O Abreviador é um indivíduo indispensável. Não tê-lo à disposição seria o mesmo que condenar as pessoas a uma eterna disputa sobre o que não tem importância, a gastar tempo valioso em conflitos, sem justificativa. 

Antes dos Abreviadores surgirem, as intervenções se tornaram donas da rotina do mundo. Não havia juiz, terapeuta, líder religioso ou antidepressivo que amenizasse situações que, tomando a devida distância, eram simples de se resolver. Até o amor foi catalogado indecente, tamanha incapacidade gerava nas pessoas de se concentrarem no que era necessário.

O necessário estabelecido sempre lhe soou como uma armadilha. Ele, por exemplo, necessita de uma dose de uísque logo que acorda, para despertar, e de sapatos um número a mais que o seu, porque os pés incomodados mudam seu humor, interferem nos seus pensamentos. Sem isso, ele não seria o que os outros necessitam que ele seja.

De um lado, a mulher se debruça sobre a mesa. Do outro, a criança chora em um misto de cansaço e birra. Ela diz que tentou de tudo, mas não consegue entender aquela criatura. Ao lado dela, o marido se esforça para manter a calma, mas a cada aguçada no choro da criança, arregala os olhos, deixa escapar a urgência que sente em resolver tal conflito.

O Abreviador tem poder sobre os outros e coloca em ação o que eles são incapazes de fazer. Sua função é interromper o que as pessoas insistem em continuar por uma série de motivos, quase sempre por covardia em admitir que estão errados, que fizeram escolhas que os levaram onde não queriam chegar. Abreviar a decisão que elas não tomam é o seu trabalho, porque, quando alguém decide por você, em um cenário desolador, há certo alívio na culpa de não ter sido capaz de resolver a questão e assumir a responsabilidade por isso. 

A mulher respira fundo e demorado, o marido a abraçá-la, distante. Observar o alívio deles não alivia sua própria consciência. A assistente do Abreviador leva a criança e ele declara que o casal pode ir embora, que o filho irá para um lar de pessoas capazes de identificar suas necessidades e atendê-las.

Ele sabe que raramente isso acontece.

Intervalo para o almoço. Bebe duas doses de uísque antes dos casos mais complexos. Gosta dos amenos, eles o divertem, como o da senhora que se encantou com o cachorro da vizinha e o sequestrou, deixando a dona acreditar que ele havia fugido, até o tal pular a cerca e voltar para casa. Foi a primeira vez que concedeu guarda compartilhada. Mas a confusão apenas mudou de rumo, porque a sequestradora se negava a permitir à dona que ficasse com Netuno. Meses depois, elas voltaram à sua sala e ele decidiu por elas qual ação deveriam tomar. Decidiu que morassem juntas, o que resolveu dois problemas, o da guarda compartilhada de Netuno e o da solidão que alimentavam, cada uma em sua casa.

Espera o dia em que abreviará mais decisões com a simplicidade do caso daquelas mulheres. Estava claro que aquelas senhoras precisavam de companhia e tinham algo em comum: o amor por Netuno. Difícil é encarar as sessões que o fazem pensar em abreviar a aposentadoria, mas logo desiste, porque não há como favorecer a si mesmo com os benefícios da profissão. É um sujeito honesto.

O homem entra, cabisbaixo, acompanhado por um policial de cada lado. Senta-se, cabisbaixo, a testa quase tocando a mesa. Há tempos que somente ele cuida dos casos mais aviltantes, tendo de abreviar decisões cruéis para que não se estendam por anos, às vezes, décadas, como acontecia antes dos Abreviadores. Raramente, esses casos o fazem sentir vontade de ler ficção, mergulhar no rio, apreciar pôr do sol. Na verdade, eles embrulham seu estômago, esfrangalham seu coração, enturvam seus sentimentos.

Hoje, em especial, o caso o levou a exceder nas doses de uísque.
 
O outro levanta a cabeça e o encara. O Abreviador, se fosse dono de algum recurso mágico, sumiria daquela sala, daquele universo. Há muito tempo as restrições sobre conhecer o indivíduo a receber a abreviação caiu. Não importa, o Abreviador tem de fazer o que deve ser feito. 

O homem sorri, porque sabe que ele é dos que sempre faz seu trabalho, não importa o grau de absurdo do caso, a intimidade com os fatos. É lógico, limpo, dizem alguns que é justo.

Ali, enquanto observa seu irmão enviuvado da serenidade que ele conhecia tão bem, de quando eram crianças brincando no quintal, tem de abreviar a decisão que não houve viciado em celebridade que aceitasse tomar, em nome da própria popularidade. A facilidade se retrai diante do absurdo.

Ser Abreviador dos incômodos de uma sociedade, às vezes esbarra nas pessoalidades. Pudesse sair, choraria em vez de engolir desesperos ao esmurrar escrivaninha, maldizendo problemas burocráticos. Há dias em que somente um grito, de permitir que a raiva escape, resolve.

Chorar é se dar a chance de sentir alívio, o que nunca achou que merecesse. Como decidir pelo outro sem causar um erro, desfigurar a legitimidade da responsabilidade e a profundidade do afeto? Faz bem seu trabalho, é ótimo executor de rotinas, mas há dias em que se perde na imensidão de ser quem resolve o que não há como ser resolvido. Há dias em que compreende que é um mero sabotador dessas decisões, um facilitador da indiferença.

O irmão olha para ele, olhar adoçado por estar em sua companhia. As rugas na testa dele o Abreviador conhece bem. Lembra-se de quando passavam horas conversando na sala, enquanto seus pais assistiam televisão. De quando falavam sobre tudo, desentendiam-se, mas sempre preservando o afeto, o respeito, o interesse um no outro.

Não há proximidade que intimide a violência de resumir a história de alguém até ela caber em uma definição sem espaço para se expandir. Não há proximidade capaz de neutralizar a engrenagem criada para servir o esquecimento de quem se vale de um serviço eficiente de negação de responsabilidade. O Abreviador sabe que ele é cria de uma necessidade que não é dele, mas cabe a ele atender. Sabe que é fruto de uma negligência travestida de solução.

O irmão olha para ele com a esperança desiludida. Sabe que o Abreviador é dos que cumprem seu papel sem questionar o motivo, o quando, considerando apenas se está na hora ou não de resolver o que ninguém mais foi capaz.

 O Abreviador sabe que, antes de ir para casa, terá de passar no supermercado para comprar outra garrafa de esquecimento.


Imagem © Willgard Krause por Pixabay

Comentários

Zoraya Cesar disse…
Gente, que SAUDADEEEEESSS dos profissionais da Carla! São tao perfeitos, tão incríveis, q deveriam ser traduzidos em outras línguas e ilustrados pelo Neil Gaiman. Apenas isso.
Albir disse…
A inafastável e temida solução do Abreviador!

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