A BIBLIOTECA >> Zoraya Cesar
Naohline chegava pontualmente às 12h. Entrava como quem pedia desculpas por incomodar as aranhas sonolentas e perdidas em suas próprias teias, por perturbar o andar do tempo, por fazer voar a poeira acumulada nos cantos.
A velha senhora estava lá, como sempre, sentada com um livro nas mãos, uma xícara de chá fumegante ao lado. E também o corvo. Um enorme corvo de penas azuis do mar profundo, que brilhavam mesmo quando nelas não incidia luz. A velha senhora não tinha nome. Era só a Sra. Dona dos Livros. Mal olhava para os visitantes, apenas apontava para uma estante e, depois, para uma das mesas espalhadas no salão. A pessoa pegava o livro – exatamente o que queria ou o que precisava – e sentava-se no lugar indicado.
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Aquele era o refúgio diário de Naohline.
Seu abrigo silencioso e acolhedor, no qual a realidade do mundo não entrava – o
trabalho mal pago, o patrão injusto, as dificuldades financeiras, a solidão. A
Sra. Dona dos Livros sempre tinha um sorriso para ela, às vezes uma xícara de
café, e a olhava com um misto de compaixão e compreensão. Como se soubesse quem
era Naohline, seu caráter bondoso, suas maneiras gentis, sua inteligência viva e discreta.
Suas adversidades e temores. Às vezes ela lia o poema de Edgar Allan Poe para o
corvo, porém, ninguém mais parecia ouvir
ou se incomodar.
Estava cada vez mais difícil
aguentar sua rotina. Se dependesse apenas dela, fazia uma loucura, largava tudo,
sumia da cidade. Mas não podia, Marvin estava velho, não resistiria a uma
mudança brusca e tomava muitos remédios. Naohline precisava de cada um dos suados
centavos que ganhava.
Ah, diriam, mas você mal se
sustenta, ainda vai assumir um gato? E Naohline reconheceria que todos estavam cobertos de razão. Ele pertencera à vizinha, uma senhorinha bem senhorinha mesmo,
que costumava oferecer-lhe sopa, um pudim, vários dedos de prosa, que morrera de
repente. E, como costuma acontecer nesses casos, imediatamente surgiram parentes
chorosos e ansiosos para ver o que lhes caberia de herança. Levaram tudo, menos
o gato - cego de um olho, adoentado e feio, seu pelo era ralo, as listras
tigradas eram tão esmaecidas que pareciam uma mancha encardida e suja. Largaram-no
lá para que se danasse. Mas ele não se danou. Naohline não deixaria o coitado
morrer de fome, frio e solidão. Adotou Marvin, portanto.
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No dia em que encontrou a biblioteca,
zanzava pela rua, naquele estado de desespero que antecede a catástrofe inevitável
– a loja em que trabalhava iria demitir alguns funcionários, ela estava na
lista e até então não encontrar outro emprego.
Mais certo seria dizer a biblioteca
a encontrou. Pois, pouco antes de passar por ela, a porta se abriu subitamente,
deixando sair um cheiro irresistível e inexplicável de livro velho e café, de
sonhos antigos, tempo lento e grama cortada.
Passou a ir à biblioteca todos os
dias durante o horário do almoço. Nem sempre lia. Apenas ficava por ali, a
aproveitar o silêncio, a identificar os cheiros que surgiam cada vez que alguém
entrava. Já sentira de bolo caseiro, chuva, sereno, beijos ardentes, amores
perdidos, risos infantis. No início, pensou que delirava, que o estresse a fazia imaginar coisas, onde já se viu cheiro de relógio, por exemplo? Mas
quando sua mente racional parou de tentar explicar o inexplicável, e ela
começou a se deixar levar pela delícia da experiência, percebeu que os cheiros
correspondiam aos livros que estavam sendo lidos no momento ou à vida das pessoas que os liam.
Os frequentadores eram outro motivo
de assombro. Muitos pareciam vindos de outras épocas. Quando viu uma mulher vestida
num traje estranho de um tecido desconhecido, e cujo cabelo nascia não do crânio,
mas das orelhas, Noahline desconfiou, fortemente, que alguns frequentadores
vinham do futuro, ou de outras dimensões. Talvez do metaverso, tão na moda
hoje. Havia a senhora muito circunspecta de vestido cinza de flanela e cabelo
armado de laquê, que lia lascivos e românticos livros tipo Barbara Cartland; o
rapaz hippie com camiseta de Jimi Hendrix, cabelos compridos e barba por fazer,
que lia Um estranho numa terra estranha, de Robert Heinlein. Um monge pintava iluminuras. E um lagarto de polainas lia Darwin. Quando Naohline estava quase se acostumando àquela atmosfera fantástica, viu um camundongo branco andando pelas prateleiras. Até aí, nada a estranhar, uma biblioteca velha e cheia de papel provavelmente atrairia roedores. Mas o camundongo usava óculos e parecia examinar os títulos, um por um.
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Houve um dia, porém, que nem a
magia do lugar ou o chocolate quente que a esperava em sua mesa cativa
conseguiram acalmá-la. Fora demitida e ainda não tinha emprego. O veterinário
insinuara que em breve Marvin deveria ser sacrificado. Naohline só não chorava
aos soluções porque estava exausta demais... Sentiu o corvo deixar cair uma
coisa sobre a mesa. Aquela carta do tarô! Havia algo escrito no verso:
Naohline ainda não sabia o que fazer, quando entrou, pela porta, um cheiro de maçã cozida, a iguaria preferida de Marvin. Ela olhou para o balcão. Lá estava seu gato cego de um olho, porém jovem, saudável, o pelo espesso e luzidio, as listras fortes e definidas como as de um tigre.
Noahline levantou-se, assumiu seu posto e sorriu. Não havia mais o que decidir. Estava em casa.
Imagem biblioteca
https://pixabay.com/photos/photoshop-a-book-fantasy-mysterious-4778071/
Imagem tarô A Roda da Fortuna
https://www.flickr.com/photos/144957155@N06/31925271215
Imagem corvo
Photo by form PxHere https://pxhere.com/en/photo/1021710
Comentários
Vou assumir o risco de me repetir, uma vez mais: a única coisa que não surpreende é a sua capacidade de sempre surpreender!
Você anda lendo Borges? Eu, iletrado indisfarçável, lembrei do pouco que li dele, desde o título de seu texto.
Pena que Borges não possa ler Zoraya Cesar...
Adriana Costa
Todo mundo devia ter o direito de encontrar uma dessas quando estivesse cansado de tudo e de todos...
Que cada um encontre seu refúgio das loucuras do mundo. O ideal não é exatamente um mundo fantástico, mas o refúgio em si mesmo.
Bem... Cada um luta com as armas que tem rsrs
Normalmente seus textos me agradam mais quando são sombrios ou baseados em vingança mas no dia que li esse, em particular, eu tive uns perçalcos (o mundo conspirou um pouco contra mim), e me senti um pouco desesperançado. A crônica veio direto para meu coração, mostrando que devemos esperar, que a tormenta um dia passa. Lê-lo acalmou meu coração.
Obrigado, muito obrigado mesmo.
Tenha um dia repleto de paz, graça, saúde etc....
Marcio - e seus comentários gentis e exageradíssimos. Borges é fantástico. Literalmente falando, claro, sem perdão pelo trocadilho. Li sim, li muito, e agora recebo esse presente. Obrigada!
lord white - e que Deus nos livre de sermos inteiramente normais. Stay weird, always!
Adriana - q bom q gostou! que tenhamos todos a sorte da Noahline. Merecemos. Ah, e o Marvin está muito feliz.
Alfonsina - vc se transportou com sua sensibilidade. Fico feliz q tenha saído da realidade com essa história e se sentido acolhida. Essa Biblioteca é realmente mágica.
Érica - amiga, depois de tantos anos convivendo comigo vc já deveria saber que a magia está aqui em toda parte hahahaha, mesmo q vc tenha medo de ver.
Dom Albir - viu? dessa vez nao serei culpada por suas noites insones. Mas espere o próximo...
Antonio Fernando - não. eu que agradeço. Muito. E desejo que seus percalços sejam resolvidos com gentileza e paz! Vc me deixou mto feliz. Escrever é levar as pessoas pra outro mundo. Qd a gente consegue isso... Obrigada!
Eu sempre amei bibliotecas e esse sentimento de conforto da sua personagem era isso mesmo. Entre os livros sempre é melhor. Sinto falta destes tempos.
Nem preciso dizer que adorei, né? Esperamos que muitos personagens se encontrem com as suas histórias nesse local.
Gde bjo!