Filomena >> Alfonsina Salomão
- Corta! Não, Filomena, essa queda não ficou natural, vamos fazer de novo!
Filomena já não aguentava mais aquilo. Devia ser a trigésima vez que se jogava do banco ao ouvir o barulho de tiro... Estava cansada de acender o cigarro e sentir aquele gosto de cinzeiro na boca, o braço doía com o peso da arma falsa e o estômago revirava com o cheiro de ketchup na parede. O que teria dado errado desta vez?
- Você está muito dura, ninguém cai duro desse jeito! Você ainda não morreu, está morrendo, mas só morre mesmo depois que atinge o chão. Vamos fazer de novo!
Fácil falar quando não é ele que está todo cheio de roxos, depois de tanto tempo se atirando ao chão. O short curto e a barriga de fora também incomodavam Filomena. Cada vez que estava ali, se esforçando para parecer um cadáver, sentia o olhar perverso do câmera-man sobre seu corpo, o que lhe causava um misto de asco e revolta. “Que ideia aceitar este papel...” Ela sempre fazia isso: dizia sim para tudo o que aparecia e só depois, quando já era tarde demain, se perguntava se deveria mesmo ter aceitado.
Filomena pensava nisto e em outras coisas desvinculadas da gravação - como a pilha de roupa sujas que a aguardava em casa, e o que havia na geladeira para comer ao chegar - quando ouviu um estrondo. Ficou ainda mais irritada com a ineficácia de toda a equipe. Aquele rapaz cheio de espinhas sequer é capaz de apertar o simulador de tiro na hora certa, pensou. Foi então que sentiu o solo vibrar com o choque pisadas nervosas.
Por instinto, não se moveu, limitando-se a entreabrir os olhos. Tornou a fechá-los tão logo se deu conta de que o invasor não fazia parte do roteiro. Ouviu berros, súplicas, uma fuzilada. O odor nauseabundo de sangue entrou por suas narinas. “Nunca mais reclamo do ketchup”, foi tudo o que pensou neste momento. Com grande cuidado para não se mexer, entreabriu novamente o olho esquerdo. Riozinhos vermelhos visguentos corriam em sua direção, desvairando colinas de joelhos, braços, mãos, sapatos e cabelos. Não longe de si, reconheceu o corpo do matador.
Uma quietude estranha invadiu o cômodo. Ouviu os carros passando lá fora, buzinas, um cachorro latindo, um amolador de facas e alicates ambulante. “Gente, eles ainda existem”. Não sabe dizer quanto tempo ficou ali, imóvel, sem calcular exatamente o ocorrido. Um minuto? Uma hora? Certo é que nunca mais reclamou do papel que salvou-lhe a vida.
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