DIAS MELHORES >> whisner fraga
sou um paranoico irremediável e nem desejo tratamento aos trinta e cinco, talvez um pouco mais, do segundo tempo e a pandemia aguçou isso, uma pandemia que eu acabei achando infinita e ainda não tenho certeza se estava certo ou não: é duro retornar, duríssimo e, quando uso o termo “retornar” é algo mais ou menos como ir ao supermercado, farmácia, pet shop, correios, rotineiramente e, pior: sem máscara, melhor: os outros sem máscara, porque ainda não me atrevi a compartilhar qualquer recinto fechado ou aberto com qualquer pessoa se eu não estiver usando o equipamento, mas não é só isso me incomodando não, é mais: é quando percebo uma certa prudência para falar do ocorrido, das quase setecentas mil mortes, das sequelas conhecidas e ignoradas, é como se o trauma fosse tal que o melhor fosse empurrar tudo pra debaixo do tapete, essa capacidade de cavalo de pau da vida, de dar a volta (não digo por cima) completamente, de ignorar uma doença pelo bem-estar mental (longe de minimizar a importância disso) e de abandonar toda aquela concepção de sairmos melhores dessa crise (nem ponderei acreditar nessa balela) e de achar que tudo será, daqui para frente, como sempre foi, ainda que isso signifique sacrificar algumas memórias de entes queridos ou amigos e voltar a algo igualmente ruim, essa habilidade de desprezar tudo me assusta e me deixa um pouco mais cético com relação às coisas, porque parece que tudo se coloca nas mãos de deus e ele nunca dá pistas sobre o tamanho da carga, mas se supõe que dê conta, como se aquela urgência toda dos primeiros meses, aquele desabafo coletivo, aquela paideia empírica que nos levaria ao valhala, sinto expor, fosse fuga, fosse autoanálise e eu, que gosto de revisitar, de repisar, de refazer, de reviver e sempre espero dos dados a pior notícia, sigo inventariando esses pesadelos, para que um dia, talvez, nunca me esqueça de ser quem sou.
Comentários
Beleza de fechamento, Whisner!