O SOLISTA >> Carla Dias
Cansou-se de lidar somente com a realidade. Ela se nega a valorizar suas impaciências, amplificando-as em agonizantes tarefas carregadas de logística e sermões burocráticos. Em essência, tem se importado pouco. Mistura a dita com aparas de delírios, assim consegue enxergar seus malquerentes como impulsionadores de fascínios. Sabe que todos colecionam desafetos e que alguns deles sorriem mais bonito que outros. Aprendeu a identificá-los, a circular entre eles, a se render aos seus desprendimentos, mas não aos seus lamentos. É um permutar isso por aquilo desprovido de censura. E daí que ninguém converte interesse imediato em apreço por ele? Que seu currículo não sustenta mais do que conversas que minguam no terceiro drinque? Não é o único que vem convalescendo de solidão por período indeterminado. Leu isso em uma pesquisa que foi obrigado a pesquisar. Não está só no palco dos que escapam dos abraços de quem desejam. A humanidade anda solitária. As pessoas, ocas, à espera de um preenchimento que não chega. Ele também espera e suas esperas o moldam um pouco a cada dia, transformando metas em desvios, buscas em veleidades, conquistas em futilidades. Pretende declarar outro solista para a expiação das tramas solfejadas pela vida na carne da sua história. Nem se importa se tiver de arrancá-lo da ficção, mas necessita que esse alguém suporte sê-lo. Aquece as mãos na fogueira do fogão quatro bocas. Desiste do jantar. A fome o abandonou há cinco segundos. Despe a alma do desejo pelo vinho dormido na porta da geladeira. Jejuará suas faltas contínuas durante um capítulo do livro esquecido na estante há um tempo muito. Vai usá-lo no resgate do próprio interesse por uma história que não a sua.
Imagem © William Thomas Horton
Comentários
Maravilhoso e maravilhosa, o texto e a autora, respectivamente!
Bjo!!
O talento da Carla de transformar em palavras os sentimentos que não têm nome próprio é inigualável.
Quantas vezes nos refugiamos em histórias que não as nossas.