DERRADEIRO >> Carla Dias

© Zdzisław Beksińsk

Procuro em mim uma emoção com a qual comparar. Falho em encontrá-la. Permaneço estática. As pessoas passam por mim, falam comigo, sorriem para mim. Eu assim, paralisada, incapaz de corresponder. Sob a minha pele, espinha-me um sei lá de sensações. Nunca as senti. Impossível assemelhá-las. Tal incompetência  me embrulha o estômago.

Passa por mim e me toca o rosto. Ninguém jamais me tocou o rosto desse jeito. O antes se nubla. Sinto meu corpo se confundir. O toque me dói atrasado. Solto um gemido que se mistura com os barulhos do encontro entre pratos e talheres. Alguém chama um nome e demoro a reconhecê-lo meu. Desiste de mim ao me perceber indiferente ao chamado. Esforço-me para encontrar uma sensação que me desvincule desse infortúnio. Nada me chega. Como voltar, desfazer o meu desejo de me tornar contraventora dessa tarde de domingo?

Os celulares na cozinha, dentro de um vaso imenso que meu tio trouxe de outro país. Mais de uma dezena deles. Silenciosos. Esquecidos. Uma vitória dispensá-los por algumas horas. Trocados por vinho, conversa solta, sombra da grande árvore que se mostra dona do jardim.

Insisto em buscar o grito. Se pudesse, eu o arrancaria da garganta. Impossível, o entalo é dominante. Meu coração desgovernado feito carro que perdeu o freio. Eu neste lugar, inativa. Se pudesse, eu me despediria daquele que amo em segredo há mais tempo que muitos julgariam decente. Viajaria por lugares sobre os quais as histórias que escutei me encantaram os ouvidos e o espírito. Arriscaria os riscos que valessem a pena. E se, e se, e se...

E se em vez de anunciar que quebrei a regra e conferi meu celular confiscado eu apenas me calasse? É isso... o que tem de ser. Abraça-me de passagem e meu corpo estremece de puro desespero. O último abraço? Sei que fim do mundo é fim. Sei também que eles têm a chance de não pensar no fim durante o fim. O aviso dizia que não demoraria. Temos apenas mais alguns minutos, a duração minguada de um comercial entre a novela e o filme repetido pela trigésima vez.

A menina segura a minha mão seca de vida. Parece um acessório quebrado rosqueado no meu pulso. Brinca com meus dedos por alguns segundos, depois foge da minha presença, levando com ela a mais cara das minhas lembranças colecionadas. Tanto afeto resumido no anel que herdei de minha avó. Permito a fuga. 

Tento estancar o desespero que me mantém refém, inerte. Observo a todos e nem me lembro o que comemoramos. Quem celebramos. Chegamos ao desfecho que criamos. Humanos acostumados a chamar de começo o que há tempos temos moldado com as particularidades dos nossos desejos. Até chegarmos aqui, ao fim inegociável.

A cabeça lateja o segredo que me ocupa. Eu, pesada feito concreto. A respiração difícil, meus pulmões parecem desistir de mim.

Contagem regressiva no meu dentro. Por fim, sorrio o adeus derradeiro.

Imagem: Sem título (1984) © Zdzisław Beksińsk (direitos autorais herdados por Muzeum Historyczne w Sanoku), CC BY-SA 3.0Link

carladias.com

Comentários

Nadia Coldebella disse…
Uma doença incapacitante, uma paixão avassaladora, uma festa crucial no final de ano, um reencontro inesperado e devastador... Tentei encaixar essa emoção desconhecida em todo tipo de situação, mas me dei conta que essa intensidade e estranhamento talvez só possa ser explicada por algo que ainda não conheço, o que no caso seria minha própria morte, seja ela a do meu corpo ou de parte de mim.

Não sei é a intenção, mas as leituras dos seus textos são sessões de terapia semanal, palavras que ecoam e me fazem meditar e confrontar. Não é leitura para os fracos. Tanto não é que leio uma vez, me fortaleço, e só então leio com o entendimento, se é que tenho.

Continue assim, vou lendo enquanto puder.

Gde Bjo, Carla querida!
branco disse…
Li, eli, rereli, rererereli...não vou estragar comentando o óbvio...prefiro rerererereler e rerererereresentir...
Zoraya Cesar disse…
'A menina segura a minha mão seca de vida. Parece um acessório quebrado rosqueado no meu pulso.' Nem preciso dizer mais. Farei como lord white: na presença do inefável, calo-me
sergio geia disse…
Carla, esse "Derradeiro" hein? Concordo com a Nádia sobre seus textos-terapia. E também registro a frase que Zoraya citou como algo que me bateu forte. Vou olhar a chuva que cai lá fora, ouvir um pouco o seu som, depois volto pra te reencontrar. Sinto que preciso.
Albir disse…
Que força, Carla! Não dá pra ler impunemente.

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