NÓS TRÊS >> Sergio Geia
Domingo chuvoso. Não chuva pesada, mas chuva birrenta. A chuva que chovia no domingo era chuva faceira, que surgia de repente assustando as pessoas e pegando muitos sem proteção. Ela ficava assim, escondidinha por detrás de um sol pálido. Então, chuva. Às vezes miúda, às vezes intensa. Depois satisfeita, ia embora para voltar o sol, branco, pálido. Algum tempo depois, ela de novo, miúda, para, em seguida — você já sabe o que vou dizer. E assim a manhã seguia, às vezes com chuva, às vezes com um simulacro de sol, às vezes com pequenas pausas de um céu branco e seco, sem chuva, sem sol.
Ele se sentou à mesa da calçada no Laço da Costela, na Santo Amaro. Chamou a mocinha, pediu cerveja. Na mesa ao lado, também na calçada, outro homem já bebia a sua cerveja. O que diferenciava as mesas daqueles dois homens, dois homens solitários molhados que bebiam cerveja domingo de manhã na Santo Amaro, é que na mesa do homem que chegara, além da garrafa de cerveja, ele tinha um copinho de Steinhaeger; na outra, do primeiro homem, além da cerveja, um copo americano com cachaça envelhecida.
Mas chega de primeiro homem e do homem que surge depois. Vou descrevê-los, assim, ficará mais fácil para você identificá-los. O primeiro homem, aquele que já estava no bar quando o outro chegou, vestia uma camiseta preta, gola careca; usava bermuda jeans verde-musgo e chinelo de dedo; tinha os cabelos cinza, mais brancos que pretos, um olhar de quem já passara por boas nesta vida. Não era um olhar cansado. Olhando melhor o olhar do homem da camisa preta, vi que era o olhar da experiência, tipo Al Pacino. Não em O Poderoso Chefão, quando ele era muito jovem, mas em O Advogado do Diabo ou em O Irlandês.
O segundo homem, que chegou depois, era mais jovem, tinha cabelos pretos, embora com fios brancos já aparecendo principalmente dos lados; deveria estar chegando aos 30. Usava uma camisa polo azul-marinho bem básica, calça jeans azul com a barra dobrada e botas marrons. Tinha um olhar de inquietude, um sorriso largo — sim, esqueci deste detalhe; o outro pouco sorria — e uma volúpia para beber. Enquanto o homem de camisa preta bebia calmamente a cerveja e a cachaça, ele bebia com pressa a cerveja e o Steinhaeger, como se houvesse um compromisso e estivesse atrasado; a velha pressa dos jovens.
Tirando a cachaça, o Steinhaeger, a idade, os dois homens eram muito parecidos, inclusive fisicamente. Poderiam ser pai e filho, ou o mesmo homem em períodos diferentes da vida. Até o olhar de ambos estava direcionado para o mesmo lugar: a feira que acontece aos domingos na Santo Amaro. Apesar da chuva, às vezes do vento, ela seguia movimentada. De vez em quando o homem de camiseta preta acendia um cigarro, ficava em pé, fumando e bebendo. Quando sentava, era a vez do outro. Ele acendia o cigarro, e ficava olhando o vaivém; parecia que tinham combinado.
Talvez seja mania dos solitários, o cigarro talvez seja um grande companheiro. Ele permite a você ficar em pé, encostado num poste, ou num muro, apenas olhando, sem constrangimentos. Ninguém estranha, ninguém desconfia. Ele está fumando, pensam. Os dois homens faziam isso, olhavam a rua enquanto fumavam e bebiam, e aquilo parecia lhes fazer bem.
A manhã foi passando e as garrafas de cerveja também, até que o homem mais velho pediu uma refeição. Só disse à mocinha, o de sempre. Então percebi que já era freguês antigo e que a moça já conhecia as suas preferências. Ela trouxe baião de dois, um prato de costela que já assava na churrasqueira havia horas, farofa e vinagrete. O homem respirou, fez o sinal da cruz e começou a comer com prazer.
Na outra mesa era só cerveja e Steinhaeger, o homem jovem não queria saber de comer. Até que chegou uma mulher com duas crianças, um menino e uma menina, foi quando percebi que o homem jovem não era solitário. Eles se sentaram, pediram coca-cola e comida, muita comida. Almoçaram com alegria frango assado, arroz, feijão, costela e baião de dois.
Após o almoço, a família do homem novo se lambuzou de doces e petit gâteau; o homem novo continuou com sua cerveja. Enquanto isso, o homem de camiseta preta se levantou, pagou a conta, agradeceu e seguiu a Santo Amaro sentido Maria Paula, não sem antes dar uma espiada na mesa do homem novo que estranhamente estava desocupada. Eu segui o meu caminho pela rua molhada, naquele momento o céu estava seco. Queria, na verdade, ir até a Consolação. Quem sabe assistir a uma missa na Igreja da Consolação, às vezes há missas na hora do almoço. Ou um filminho no Petra Belas Artes. Quem sabe...
Comentários
O bacana de escrever é essa liberdade sem julgamentos, sem juízo de valor - esse fica a critério do leitor.
E tô com inveja. Ia me divertir nessa mesa, observando as pessoas...
Um gde abraço!
Alfonsina: também não fumo, mas sempre tive essa imagem. E como você disse, realmente é um privilégio, eles acham um cantinho qualquer e ficam talvez a misturar pensamentos a fina fumaça, um momento para a reflexão.
Zoraya: ler o Crônica domingo de manhã é um tremendo de um programa. Também comungo de sua opinião sobre cigarros, apesar de não fumar.