ESTÔMAGO >> Carla Dias
Passou a vida em consultórios a tratar enfermidades. Nunca identificaram a moléstia que o acomete, ainda que seu estômago viva a atacá-lo, de deixá-lo acamado durante dias, privado dos prazeres de se deliciar com certas comidas, com as delícias das bebidas capazes de embriagar até levar a nocaute até mesmo os irritantes demônios que constroem seus impérios nas barras das saia da miséria.
Quando escuta alguém a tecer floreados ensejos aos sonhos, revira os olhos, ainda que em seu interior ecoe um descarado desejo de olhar para ele, o sonho encarcerado, boiando no rio ácido do seu estômago, gritando sua necessidade — e direito — de se realizar.
Sua vida tem sido uma coleção de antiácidos, desafios enfrentados e sucessos concebidos na dobra da felicidade, o que mantém os sorrisos desbotados e as paixões aguadas. Também coleciona desafetos, mas esses não o perturbam. Na verdade, são eles que garantem que o ser não se dispa de vez da sua humanidade. São as atrocidades a ele desferidas — e a tecnologia tem sido uma parceira exemplar nessa flechada — que mixam verdades catastróficas com mentiras ensaiadas em laboratórios de imaginários fantásticos. E o fantástico exerce nele o poder do fascínio. E o fascínio dói nele menos do que um estômago embrutecido por um sonho recusado.
Os que escrevem poemas e canções que despertam esperança até nas pessoas de emoções áridas, talvez evitem o sonho que mora nele feito uma lesão incurável. Eles que são dotados da capacidade de segurar o sonho com seu olhar-sentimento, e de fazê-lo bailar ao vento da bem-aventurança, jamais flertaram com o destempero daquele que carrega afogado no silêncio, aquela ousadia brotada a contragosto, um infortúnio que não para de minar perigo às proteções que vem construído para si mesmo.
Porque ele faz sentido no papel que interpreta, mas não quando é o que sente, de quando o estômago lhe dói de fazer gritar a incongruência dos seus papéis desempenhados na rotina e a realidade morando na garganta do sonho que não morre. Chega a viver no rastejo, mas não acaba. Fica ali, babando possíveis armadilhas passionais e embalado em coragem que não desbota. E que o faz, de vez em quando, pegar-se murmurando diante de um copo de água e a vista da janela da cozinha, “eu tenho um sonho que não sei sonhar.”
Engole dois antiácidos.
Imagem: Marcelo por Pixabay
Comentários
Quando eu digo que seus textos são textos-terapia, eu não estou brincando.
O leitor precisa ser paciente, tanto no sentido de aguardar as palavras entrarem e produzirem os efeitos necessários, quanto no sentido de ser passivo e deixar que isso aconteça.
Porém, com os seus textos, a passividade termina aí. O confronto que ele proporciona ao leitor exige dele um trabalho psicológico ativo para elaborar e assentar o significado que cada palavra traz às dores que são comuns, mas individuais.
Se o leitor deixar que as palavras passem sem agir sobre elas, elas se tornam vento e logo tempestade. Agora ele não poderá mais fugir da consciência da própria dor. Mesmo se negar, elas ainda estarão aí cutucando, mexendo, expondo, até que o leitor decida fazer alguma coisa com isso.
Um texto maravilhoso como sempre. Agora vc me deixa aqui, exposta, pensando no meu sonho não sonhado...
Grande beijo!