Conceição >> Alfonsina Salomão


Conceição cogitava: será que é permitido mostrar os pés em público? Sabia que quem usava véu, além de cobrir os cabelos, tapava também braços e pernas. Mas e os pés? Na mesquita ela tirava os sapatos antes de subir no tapete pra rezar, mas era diferente... lá estava entre mulheres. Os homens rezavam no tapete em frente, a uns bons metros de distância, e jamais se retornavam para observá-las.

É verdade que não havia muitas pessoas na orla. O dia estava nublado e o restante do grupo estava no calçadão, caminhando contra a intolerância religiosa. Pouco antes ela tinha observado, curiosa, alguns homens deixarem a multidão e se dirigirem para a água. Percebendo a interrogação nos seus olhos, Samira, carioca filha de sírios, lhe explicou que eles foram fazer as abluções para rezar, pois já estava quase na hora do zênite. Conceição ficou observando o bando de longe, pensativa, alheia ao alvoroço dos manifestantes. Além dos muçulmanos, estavam ali representantes de todas as religiões que se sentiam ameaçadas no Rio de Janeiro: espíritas, umbandistas e até umas pessoas vestidas de bruxas e ciganas. Era estranho estar no meio daquela gente que decerto tinha pacto com o diabo, mas Conceição confiava inteiramente no sheikh. Quando ele disse que todos deveriam participar da caminhada, não se passou pela sua cabeça não ir. Naquele sábado, seu único dia de folga, ela madrugou pra pegar o trem e depois o ônibus que a levaram de São Joao do Meriti até o Arpoador.

Quando o pequeno grupo voltou, Conceição se afastou discretamente da manifestação. Se eles rezaram, ela também rezaria. Afinal, não era menos muçulmana que eles, mesmo sendo mulher, mesmo sendo convertida. O que não admitia para si mesma, era que também queria aproveitar da belezura, do silêncio, da amplitude da beira-mar, que via com frequência nas novelas mas raramente visitava. O que uma preta pobre como ela faria num lugar de gente fina daqueles? Agora era diferente. Sua ida até a zona sul tinha um propósito, correspondia a um chamado Dele. Pouco importa o que os outros pensavam, no dia do juízo final, Ele saberia que ela vale mais do quê toda aquela gente que olha pra ela de um jeito esquisito.

Mas quando, resoluta, afastou-se do grupo para orar, Conceição não contava com aquela questão. Lavar ou não os pés? E, caso decidisse que não há problema tirar os sapatos, até onde poderia subir a calça? Porque dificilmente conseguiria lavar os pés sem exibir os tornozelos, ao menos que molhasse a roupa... O que seria melhor, exibir esta pequena parte do corpo ou rezar sem ter feito a purificação por completo? Seria pecado, haram como eles dizem, pronunciar o nome divino com os pés sujos? Porque naquela quentura, debaixo daquele monte de roupas, ela transpirava. Tinha conseguido, depois de muito treinar na frente do espelho, colocar o véu, mas ainda tinha tanto o que aprender... Nessas horas de dúvidas dava saudade dos cultos da igreja, onde sabia como se vestir e conhecia de cor e salteado as letras dos cânticos. Nada parecido com aquelas rezas complicadas da mesquita.

Quando estava ao lado das outras muçulmanas, Conceição movia os lábios e balbuciava pequenos sons inaudíveis, disfarçando como podia, envergonhada pela incapacidade em decorar as falas estranhas. Mas tinha fé. “Deus é grande e com a força de Deus um dia falo isso tudo direitinho”, pensava, imaginando a cara de espanto de Hussein ao vê-la rezar em árabe. Iraquiano que veio ao Brasil trabalhar para a Petrobrás, o belo Hussein, com sua tez morena e seus olhos azuis, atiçava a imaginação de Conceição e preenchia suas orações com pensamentos impuros. Era ele o culpado por ela ainda não ter memorizado nem uma sutra do Alcorão. Conceição ainda não tinha conseguido se apresentar, pois era malvisto ficar de blábláblá com os homens na mesquita, mas assim que estivesse segura de si, que entendesse melhor como funcionam as coisas naquele lugar, daria um jeito de conversar com ele. 

Hipnotizada pelo vai-e-vem das águas, encantada com o modo com que elas quase lambiam seus pés antes de recuarem, Conceição fantasiava com Hussein, seu príncipe das arábias, quando ouviu uma voz chamando ao longe: Aisha, Aisha... Demorou alguns instantes para se dar conta de que o clamado se direcionava a ela. Aisha era seu nome muçulmano, era como as pessoas a conheciam na mesquita. Aisha, a mulher do Profeta. Poucos sabiam que seu nome de batizado era Conceição, quase ninguém atinava que morava na Baixada Fluminense e nenhuma vivalma dali conhecia sua história. Melhor assim. Quando se virou, deu de cara com Samira, que a buscava já há algum tempo: “ A manifestação está quase acabando, você quer tomar um chá lá em casa?”, a moça perguntou. Então emendou, preocupada: “Mas o que você está fazendo aqui?”. “Sabe que nem me lembro?”, Aisha respondeu, sorrindo com gratidão para a nova amiga.

Comentários

Albir disse…
Que interessante, Alfonsina! Sempre acompanho essas passeatas, mas nunca me detive a observar algum grupo em particular.
Meia dúzia de palavras suas sobre o personagem e fico com vontade de saber mais sobre ele. Mais Conceição, por favor!
Zoraya Cesar disse…
Faço minhas as palavras de Dom Albir! E farei lobby e passeatas e manifestações pela continuação da Conceiçao!
Paulo Barguil disse…
Alfonsina, cada um(a) com seus dilemas e suas vozes internas...

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