BARULHO >> Carla Dias
Sempre foi de ficar de longe, percebendo arredores, contemplando gestos que, na correria do diariamente, passam despercebidos. Ficar de longe, não se enturmar com o acontecimento, é praticamente a sua profissão, mas também já lhe rendeu apelidos não muito amáveis, que finge não o terem ferido tão profundamente quanto o fizeram.
Do que gosta mesmo é de dia de feriado no meio da semana. As pessoas dormem até mais tarde e a cidade fica vazia por mais tempo do que uma quarta-feira comum permitiria. Quarta-feira que é feriado faz com que ele pule cedinho da cama, para escutar o silêncio em dia de semana que, normalmente, berra buzinas e aforismos.
Aconteceu em uma quarta-feira de feriado, quando saiu para um passeio, às seis horas da manhã. Sabia que teria tempo para uma longa caminhada solitária, antes que a cidade acordasse de vez e fizesse barulho de feriado. Porém, bem lá no fundo, ele sabia que queria mesmo era espiar, e assim o fez: ponta dos pés, muita cautela para não ser descoberto, um pouco de força para se segurar na beirada da janela.
Todos na cidade reclamavam da moça, que estava nem aí para eles, e começava seus estudos logo cedo, enquanto eles (se) preparavam o café da manhã, antes do trabalho, já equilibrando celular e mamadeira de filho, o rádio sintonizado nas notícias sobre situações bem ruins, porque as boas sempre chegam depois, e, quase sempre, passam despercebidas. No entanto, a moça não se importava com a incapacidade deles de amanhecer mais brandos, como uma quarta-feira de feriado. Todos os dias, ela coloca música e dança por horas, o som aumentando conforme se amplificam os barulhos da cidade.
A moça dança bonito, mas o que mais chama a atenção dele é a capacidade dela de ignorar aqueles que tentam despi-la da sua vocação. Em breve, ela estreará no balé da cidade, e muitos já juraram que não irão ao teatro assistir à estreia, de tão incomodados que se sentem pelo barulho oferecido por ela.
Mas o barulho dela é música, embalando uma dança ora suave, ora inquietante no fazer dela e na provocação ao outro. Ele não compreende como as pessoas aguentam os barulhos de telefones tocando, buzinas, falatório de multidão, ordens de chefe em dia de cão, briga em família, entrega de mercadoria em supermercado, campainhas, telejornais, e, ainda assim, sofrem para aceitar o som, aquele que nada pede, que tudo oferece.
Foi passando pela rua dela, em dia de quarta-feira de feriado, que ele escutou a música e se sentiu curioso sobre de onde ela vinha. Foi assim que, contrariando a importância que dava à privacidade, ficou na ponta dos pés e espiou pela janela. A música se misturou com a imagem da bailarina, ela que oferecia o mais perfeito barulho para caber em uma quarta-feira de feriado.
Ele já suspeitava, senso quem é: aquele que se mantém distante, para observar de fora. A distância que permite enxergar o óbvio. Muitos dos que juraram ausência estavam lá, na estreia da moça que os incomodava com a beleza da música, aquela que passantes não conseguiam identificar, por conta de tanto barulho cotidiano ao qual davam mais atenção.
E por quase duas horas, eles silenciaram suas reclamações, dedicando-se – olhar e coração – a admirar a moça no palco. A música no alvo.
Imagem: Marta Cuesta por Pixabay
Este texto faz parte do Crônica de um ontem, e foi publicada originalmente em 15 de janeiro de 2014.
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Ah, Carla Dias, a Princesa das Palavras, e suas frases de efeito avassalador...