ANGELUS >> Albir José Inácio da Silva
A Ave-Maria era ouvida onde se estivesse porque os rádios de
todas as casas tocavam. Os meninos então sabiam do chamado das mães e as mães
sabiam que era hora de chamar. Os pais chegariam perguntando “e os meninos?
As mães mais bravas por causa dos pais mais bravos chamavam seus filhos da rua
primeiro. Rua era qualquer lugar fora das paredes, não fora dos muros, porque
não havia muros. Não havia despedidas, boa-noite, adeus. Só continuação, amanhã
me devolve, depois eu pago, vamos no rio amanhã?
Sem ternuras na fala, só providências que mãe doente precisa da ajuda de todos:
“Não vai querer cana-do-brejo? E quebra-pedra? Lá em casa tem muito.” Se Dona
Dalva ia morrer, só perguntando em casa pra nossa mãe se ela escapa.
Dos pais falava-se pouco. Sabia-se menos. Trabalhavam. Avisavam-se os mais
distraídos: "Cara se manda, teu pai acabou de passar". Tudo isso
enquanto durava a Ave-Maria. E todos se benziam no início na rua e no fim já em
casa.
A esquina ficava vazia e ninguém ainda sabia que alguns não teriam tempo de
lembrar desse tempo. Outros se encontrariam com os olhos úmidos daquela poeira.
Outros ainda escreveriam sobre ela com os olhos secos e a letra tremida.
Não desconfiavam que a foto de meninos assustados já estaria amarela, e os
medos seriam outros, e a solidão não poderia ser disfarçada combinando nada
para amanhã.
E não se saberia mais que o dia acabou por não haver
brincadeiras a encerrar, nem mães doentes e vivas precisando de chá.
Não imaginavam que a escuridão de fora não existiria por culpa
da eletricidade. E a de dentro já não seria ouvida por mais que se rezasse
Ave-Maria.
(Este texto faz parte do PROJETO CRÔNICA DE UM ONTEM e foi publicado originalmente em 27/06/2011)
Comentários
após um período afastado de toda leitura volto é me deparo com isso?
2011??
não sou capaz de colocarem palavras a beleza e emoção de sua crônica, só posso dizer que por hoje nsoleio mais nada, quero ela guardadinha em algum cantinho da minhas lembranças.