UMA NOITE >> Zoraya Cesar
A sopa estava quente e condimentada, o caldo engrossado pelas carnes do coelho que conseguiram arranjar pelo caminho. Estivesse a comida ruim, ainda assim não lhe perceberiam o gosto, tal a perturbação que se apoderara de suas almas. Comeram em silêncio, cansados e tensos, alerta a qualquer barulho estranho, perscrutando os sons trazidos pelo vento.
Os batedores voltaram, apagando os rastros deixados pelo pequeno contingente que restara da tribo e que agora fugia, desalentado e furtivo. Sentaram-se, eles também, para comer e descansar, enquanto os outros ajeitavam o acampamento improvisado por entre as pedras e o mato. Quando a primeira estrela apareceu, foi a vez de os vigias se levantarem.
Calma e resolutamente, os quatro homens se encaminharam para a costa, deixando para trás a tribo, que dormia depois de um dia de fuga, de mortes, de perdas. O ataque à aldeia tinha sido tão feroz, que só mesmo pela proteção de Sucellos, Senhor da Vida e da Morte, eles conseguiram escapar. Malditos romanos, pareciam possuídos pelo próprio Marte, o Cruel, astutos, tinhosos, mortais. Que a Sombria Dama do Mundo Inferior os levasse!
A noite estava úmida, e gotas geladas de mar respingavam em seus corpos, levadas pela aragem fresca que lhes arrepiava a pele. Mas os gauleses eram resistentes ao frio, às intempéries, às desgraças. O medo de serem descobertos e o ódio a seus algozes fazia o sangue ferver e correr mais rápido em suas veias, espantando o sono. E a coragem os mantinha despertos. Alternaram os turnos de observação ao mar, para que os olhos não ficassem cansados e deixassem de perceber qualquer mudança no horizonte, como a aproximação de uma das rápidas e sutis embarcações romanas.
O cão que seguira o pequeno clã por todo o dia uivava, lúgubre e lastimosamente, para a lua amarelenta e baça, que subia por entre nuvens cinza, clareando, ainda que um tanto sinistramente, a paisagem. Belisama veio para acender nossa noite e não nos deixar surpreender, agradeceram os gauleses.
A vigia prosseguiu, a madrugada também; o frio aumentou, e com ele o cansaço. Para afastar o sono que insistia em dominá-los, os homens simularam combates entre si e ofereceram silenciosos cânticos sagrados ao deuses da guerra e da abundância.
Um vento gelado e brumoso tomou conta da noite, fazendo-a mais longa, quase insuportável. O cão deitou-se, ululando de quando em quando, tornando todo o ambiente algo fantasmal. A fome apertava dolorosamente as entranhas dos guarda-costas e o frio os fazia tremer, enrijecendo seus músculos. A exaustão ameaçava vencê-los a qualquer momento. Mas os gauleses não se entregaram à fome, ao frio, ao medo ou à dor.
A lua foi sumindo lentamente, e, antes mesmo de a última estrela apagar-se, finos raios de sol tocaram a espuma do mar. O turno chegara ao fim. Um turno pesado, sofrido, tenso. E o dia que amanhecia não prometia ser muito melhor. O gaulês que passara boa parte da noite em pé, recostado a uma pedra, o mais solerte, o preferido de Teutatis, o deus da guerra, era o chefe do grupo, e cabia-lhe tomar as decisões.Tudo o que ele queria era descansar um pouco, mas sabia que não havia tempo. Cansados, temerosos, sem alimentos ou abrigo decentes, com algumas mulheres e crianças atrasando a fuga, eles deveriam continuar sua jornada, rápidos e invisíveis, até estarem fora do alcance dos romanos.
O homem acordou de um salto, enregelado, faminto de doer e possuído por um medo irracional do escuro, do desconhecido, da morte. Nesse instante, a janela do quarto abriu, abrupta e violentamente, empurrada pelo vento gelado que bramia do lado de fora.
Era madrugada, e a casa ainda dormia. Ele se levantou e foi direto para o estúdio, sem parar nem mesmo para acender as luzes. Não comeu, não se aqueceu, não falou com ninguém. Apenas entrou na sala e fechou a porta, um sinal inequívoco de que não deveria ser incomodado sob nenhuma circunstância.
Das primeiras horas da manhã à noite pintou, frenética e ininterruptamente, até conseguir o resultado desejado. Até expulsar seus demônios. Até saber, em seu íntimo, que o homem que ele fora em outra vida estava salvo para sempre.
Les gardes-côtes gaulois
Jean Lecomte du Noüy en 1888
musée d'Orsay, Paris, France
Comentários
beijos, Amore!