NÃO >> Carla Dias >>
Houve uma época em que eu me joguei ao mundo. Trabalhava e estudava durante a semana, fazia aulas de bateria aos sábados e frequentava um clube para dançar aos domingos. Nos raros intervalos entre isso e aquilo, ensaiava com minha banda, visitava amigos e escrevia.
Queria que o dia durasse 48 horas.
Naquela época, eu estava tão ansiosa pelo que viria que vivia tudo em uma velocidade que já não reconheço. Não... Não digo isso pela idade, já que quase trinta anos me separam de lá. Digo isso porque, quando não temos ideia do que desejamos para a vida, pisamos no acelerador e seguimos adiante sem aproveitarmos a paisagem.
Particularmente, adoro uma paisagem.
Então, décadas depois, compreendi o óbvio: o que desejamos para a vida nem sempre é o que receberemos dela, tampouco o que desejaremos para a vida daqui a vinte e quatro horas ou quase trinta anos.
Para mim, a necessidade de compreendermos a maleabilidade do desejo para a vida também cabe ao que desejamos para cada dia, para os desejos cotidianos. Sinto-me incomodada ao ver a quantidade de pessoas agindo como crianças birrentas ao lidar com assuntos que exigem a compreensão de um adulto, somente porque não receberam o que desejavam. Porque não, você não pode ter tudo o que deseja, ainda que bata o pé, berre e alegue – a voz rascante de raiva – que é o cliente, então está certo. Às vezes, não está certo não, cliente. E para o seu próprio bem, para que você receba o que realmente merece e funcionará para você, alguém tem de lhe dizer não.
Às vezes, temos de dizer não a nós mesmos.
Não até mesmo para a rotina que achamos necessária para alcançarmos o desejo de uma vida. Não pode se tornar aquela pausa fundamental para que não cometamos aquele tipo de erro que enreda o outro, que o prejudica. Que nos prejudica, também.
A ansiedade não muda, mas posso dizer que embarco em mais pausas do que corridas. O mundo ao qual me jogo, diariamente, é interno e tem seu mérito. Lá fora eu vou de vez em quando. As saídas para dançar se tornaram danças na sala de estar e, nos intervalos entre isso e aquilo, gosto de receber os amigos para o almoço e uma longa conversa.
De lá para cá, recebi mais nãos do que imaginaria ser possível uma pessoa receber. Obviamente, chegou aquele momento em que me dei conta de que não era comigo... A vida caminha dessa forma. Nãos me escolhem e escolhem aos outros, também. Porém, após um tempo de lamento próprio de quem não ganha realização do desejo que deseja, reformulo, dou uma boa requintada ao meu desejo, às vezes o simplificando um tanto, e sigo em frente.
Decidi, e há muito tempo, que não permitiria me tornar uma adulta birrenta. Adulto birrento perde tempo valioso tentando desabonar a importância do outro. Adulto birrento grita com caixa de supermercado porque cliente tem sempre razão, xinga o motorista do carro que parou no sinal vermelho, atropela bicicleta porque desaprova ciclovias. Adulto birrento mistura as estações e defende o indefensável, e eventualmente se torna violento – emocional e/ou fisicamente –, somente para provar que seu ponto de vista é o que vale. Também é quase que continuamente infeliz com seu desejo constante de mostrar que tem direito ao que não é de direito de ninguém, como desqualificar o outro como ser humano por conta de sua classe social e/ou raça.
Sem contar que hoje me sinto muito bem com o dia e suas 24 horas, mesmo quando parece que ele precisaria ter 48 para que eu pudesse concretizar meus planos.
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carladias.com
Comentários
é verdade, nem sempre o cliente tá certo.
mas o que tá certo é o seu texto. Perfeito como sempre.e como sempre gostoso de ler.
continue....
Enio.
(se superando a cada crônica, hein, D. Carla?)
Zoraya... Ok, já não sei mais como agradecê-la :)
Eduardo... Normalmente, o não dado a nós mesmos tem seu valor.