UM SUBSTITUTO >> Carla Dias >>
Conheçam Graciliano.
Quer dizer, vocês podem tentar. E até que, para alguém que não quer conhecer pessoas, ele conhece muita gente.
Dizem que ele tem talento para atrair clientes para a birosca na qual trabalha. Ele alega que não se esforça, e que adora quando o lugar fica às moscas. Ele gosta do silêncio. Não é sempre que uma birosca tem no seu quadro de funcionários um tão qualificado. Veja, ele sabe conjugar verbos, e eles cabem bonito nas frases. Até parece música.
Desde que as escolas foram fechadas, uma geração inteira de pessoinhas sem escola nasceu. Elas aprenderam o que havia para ser aprendido, apenas o suficiente para sobreviverem em um mundo que se calou por não saber dizer o pensamento. Sendo assim, calar-se é necessário.
Por isso é fácil entender o desejo pungente de Graciliano pelo silêncio. Melhor mesmo é não escutar o que as pessoas até tentam, mas não sabem dizer.
Ele foi filho de dono de faculdade, por isso é cultuado na comunidade dos sem escola. As pessoas o tratam feito professor, e o cansam de tanto debruçarem no balcão da bodega e pedirem que ele os ensine um algo que seja. Graciliano é bom com os verbos, mas nunca foi estudante dedicado. Essa busca da população pela sua sabedoria, ele acha que é sem pé nem cabeça.
Ele é nada, foi um moleque que teve a oportunidade de frequentar as salas de aula e a desperdiçou, porque imaginar um mundo no qual escolas são fechadas era exagero, até mesmo para ele, que cultuou o comportamento derrotista somente para desmoralizar os pais. Os mesmos pais que o abandonaram de vez, quando estar cercado de pessoas sem estudo, ou com desempenho intelectual inexpressivo, passou ser antônimo de dignidade.
As escolas foram fechadas, começando pelas pequenas, aquelas que, no ponto de vista dos estatísticos, manteriam as pessoas necessárias na ignorância, para que alguns poucos pudessem reinar soberanos. Afinal de contas, quem não conhece o fato? Um povo ignorante não sabe como exigir seus direitos.
E direitos esse povo não tem. Por isso a fascinação por Graciliano.
O dono da bodega lhe deu guarida, depois de Graciliano ser expulso de casa. O rapaz se fechou completamente, porque jamais imaginara que acabaria assim, no meio dos sem estudo, sem escola. Primeiro, maldisse Deus e o mundo e seus pais e o governo e os colegas da escola e as pessoas todas que ele ainda não conhecia. Com o tempo, compreendeu que era melhor lidar com a realidade, e começou a ajudar o bodegueiro em seu estabelecimento.
Apesar de mal-humorado, inicialmente monossilábico e percussor de certa aversão pelo lidar com o outro, foi moldando-se com o tempo. Depois de fecharem as escolas, fecharam as bibliotecas, os cinemas, os teatros, e por aí foi. Para ter acesso a tudo isso, somente com uma riqueza que possa construir esse ambiente na própria casa de quem desejar o tal tudo isso.
Graciliano, vindo de família abastada, trouxe com ele uma pequena biblioteca, e jamais sairia de casa sem sua coleção de LPs. Ele não estava bem na escola, faltava às aulas, não queria saber de nada, criava confusão, mas isso não significava que ele não queria nem gostava de aprender. Ele aprendeu tudo o que podia nas ruas, nos livros e nos discos. Durante longas conversas, nem sempre pacíficas.
Enquanto varre a bodega, Graciliano imagina o dia em que, novamente, as pessoas terão direito ao aprendizado, a ampliar seus horizontes. Porém, nunca acreditou que essa exclusão — porque sim, trata-se de uma exclusão — teria a força necessária para zerar a curiosidade das pessoas a respeito do mundo, o externo e o interno. Por isso dá aulas em sua comunidade nos finais de tarde. Tudo misturado, mas ainda assim vale a pena. Responde às perguntas dos curiosos, mesmo quando não sabe a resposta, faz com que eles pensem qual poderia ser.
Graciliano tem talento para atrair clientes para a birosca. Eles querem aprender a conjugar verbos e a expressar em palavras seus desejos, buscas e sentimentos.
Trecho do filme O SUBSTITUTO (Detachment/2011)
Imagem: Lunch Hour © Joseph Hirsch
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