DE FADAS, FEITICEIRAS E ASSASSINATOS (Parte I)
>> Zoraya Cesar
Estava exausta, após quase dez horas de voo sem dormir ou comer decentemente. Comida de avião, mesmo vegetariana, causava-lhe náuseas. Costumava levar seu próprio farnel nas viagens longas, mas tem um momento em que o organismo, cansado de lanches, pede uma refeição. E ela, que nem gostava de carne, estava quase ansiando por um filé com fritas.
Tempo para descansar e comer, porém, não havia. Importante era chegar ao apartamento, deixar a bagagem e entrar em contato com a pessoa a quem viera procurar. Comeria nesse ínterim. Se tivesse sorte, poderia, até, tirar um cochilo. Não, alertou seu cérebro disciplinado. Para dar conta do que viera fazer, deveria, antes, comer e dormir adequadamente. Sim, respondeu ela, eu sei.
Carregava apenas uma pequena mala e uma mochila, para facilitar a locomoção, caso precisasse viajar rapidamente. Como dessa vez, em que saiu do Rio para Paris, às pressas, a única a saber como quebrar a resistência de Eoland, a Tímida.
Desceu na estação Luxembourg e foi em direção à Rue Le Goff, onde ficava o apartamento, bem em frente ao Hôtel du Brésil. Adorava ficar em hotéis, mas sua missão exigia discrição; ela não poderia se arriscar a despertar a atenção de algum empregado ou hóspede mais curiosos. Ademais, o apartamento era preparado especialmente para gente como ela, o refúgio certo e ideal para quem precisava se esconder ou trabalhar incógnito. À guisa de consolação, prometeu-se que, tão logo terminasse o serviço — estivesse viva, ou, pelo menos, íntegra — mudar-se-ia para o hotel, descansaria alguns dias para desfrutar da cidade-luz.
Luz, devaneou enquanto subia as escadas, luz. Combater as trevas na cidade-luz...
Abriu a porta, pesada, de madeira escura e lisa, comum, não fosse pela ausência de fechadura e pela estranha mandala nela entalhada. Estranha para os não-iniciados — pois a mulher imediatamente reconheceu o símbolo, e, nele pousando sua mão direita, pronunciou a fórmula de proteção ali desenhada, que afastaria energias negativas e abriria a porta. Entrou.
O apartamento ficava nos fundos, com vista indevassável e, todo ele, tratado acusticamente para não permitir o escape de sons. As cortinas, descerradas, deixavam entrar, pelas largas janelas, raios de sol de uma tarde que já se deitava, preguiçosa e amarelenta. A sala, espaçosa, de tábua corrida e paredes brancas, continha uma estante de madeira, na qual estavam dispostos alguns livros e uma Bíblia bastante usada; uma mesa redonda, de mármore negro e pés de ferro, circundada por seis cadeiras também de ferro. Seis móveis na sala onde se realizavam os trabalhos, seis, o número místico perfeito.
No quarto, um armário embutido guardava roupas de cama, travesseiros e toalhas de banho. De um dos lados da cama, coberta por lençóis cor de lavanda, ficava um espelho móvel de cristal de corpo inteiro, encaixado em uma moldura de madeira; do outro, uma mesa de cabeceira, sobre a qual repousavam um telefone de apenas uma tecla e um caderno de capa preta, cujas folhas estavam repletas de assinaturas e dizeres. Ela folheou o caderno, sorrindo ao ver alguns dos nomes, enchendo-se de respeito ao ler outros. Seguindo a tradição, pegou a caneta da bolsa e escreveu:
Maybelline Oceahn.
Maybelline Oceahn. Maybelline. Nome de rainha em pelo menos um dos Reinos das Fadas. De fada, no entanto, ela nada tinha.
O poder costuma exercer um encanto especial. Historicamente, o Mal parece ser mais forte, contabilizar mais vitórias e menos baixas, arregimentar mais correligionários que o Bem. Possivelmente venceria no Grande Final. Em compensação, seus servidores eram escravos de um senhor traiçoeiro e nefando que cobrava um preço extremamente alto de seus asseclas por qualquer favor que fizesse. Pertencer à Ordem da Luz, por outro lado, era estar numa luta sem fim pela sobrevivência, perder, tantas vezes, amigos e batalhas; mas significava liberdade — dolorida e sacrificante que fosse —, a verdadeira liberdade, nessa vida e na outra.
O que escolher? As vantagens temporais, no aqui e no agora? A vida eterna? Sofria, nesse dilema, ora trabalhando em favor de um, ora de outro, ou ficando inerte, sem tomar partido. Contudo, as marés da vida não suportam indecisões prolongadas, e sempre chega o momento em que se há de definir qual estrada seguir. Quando chegou sua hora de escolher, ela escolheu o improvável. O Caminho mais difícil.
Maybelline Oceahn não tomou banho, nem trocou de roupa. Pegou a bolsa e saiu, o GPS ligado, para encontrar a loja Le Gnome Grognon, o gnomo resmungão, e tentar falar com a dona, Mlle. Sleigh Beggey, a Fada Branca — e, embora seu nome significasse, em gaulês, ‘a amiga carinhosa”, era conhecida por sua rabugice e má vontade. Precisava convencê-la a lhe dizer como encontrar Eoland, a Tímida, e comprar o material necessário. Talvez conseguisse alguns encantamentos também. Nem que fosse para acalmar seu medo. Sim, porque Maybelline Oceahn, por experiente que fosse, estava com medo.
Comprou uma maçã e um cacho de uvas. A maçã, comeu-a enquanto caminhava. As uvas, guardou-as para oferecer à Mlle., sendo essa a senha de apresentação. A refeição que tanto ansiava, o descanso que tanto precisava, ficariam para depois.
Era uma feiticeira, sim, e estava ali para impedir um assassinato. E daria tudo de si, até a si mesma, para cumprir sua Missão.
Continua dia 6 de novembro
Comentários
O mundo fantástico das criaturas mágicas está sendo desvendado pelo olhar atento da nossa querida escritora... companheiros, escondam suas vassouras, caldeirões e varinhas, você pode ser descoberto!
beijos mágicos,
Ana Luzia
Brincadeirinha. Aguardaremos, enfeitiçados.
Meu único contato com esse universo se dá através da minha filha de 3 anos, que, inclusive, foi hoje à creche vestida de fada. Ela adora isso, a ponto de não fazer a pirraça habitual na hora de sair de casa.
Sobre Halloween, acho que ele não mete medo em ninguém que tenha que conviver com o noticiário recente, que nos agride com imagens tão assustadoras quanto as da Dilma Roubeff, Nestor Cerveró, Zé Dirceu e tantos outros.
Beijão.
PS provocativo: Percebeu que, me utilizando de sua tática, crio um certo mistério para o decorrer de nossa semana?
Somos muitos! :)
Aguardando o dia 6 (com ansiedade).
Beijocas com saudades.
Pat Rocha