DE UNS ANOS PRA CÁ, PASSEI A CHORAR
>> Sergio Geia
O ditado popular diz que homem não chora. Bom. Ou o ditado popular está errado ou o homem que vive em mim está a me abandonar. De repente, meu lado feminino está a expulsar a parte macha. De repente, o Pepeu vacilou e ser um homem feminino fere sim o lado masculino. Não só fere como o expulsa, sem eira nem beira. De repente, a sensibilidade é característica exclusiva do elemento feminino, e ser sensível a ponto de verter um rio de lágrimas por qualquer bobeirinha revela que esse elemento mostra-se acentuadamente presente num corpo que, pelas características, é corpo de macho. Questões ligadas à identidade de gênero? Talvez não, talvez se trate mesmo é de corpo de macho com alma de fêmea.
O que me tranquiliza é que não é nada disso. Que errado é o ditado, que nasceu revestido de preconceitos, fruto de uma sociedade conservadora e patriarcal, que vai demorar muitos anos pra se tornar uma sociedade mais humana, especialmente por ter demorado séculos pra descobrir que não só a beleza e a graça, mas também a sensibilidade e outras características existentes no homem — com a diferença que essas características coexistem com um pouco mais de arrojo — estão presentes no elemento feminino.
O fato é que, de uns anos pra cá, dei pra chorar quando alguma coisa me toca. E pode ser qualquer coisa, até a morte de um cão. A primeira vez que percebi essa minha nova condição foi numa apresentação de balé da minha filha. Eu me esforcei para segurar as nuvens que brotaram nos meus olhos não só na hora da apresentação dela, mas também nas outras apresentações. Algo medonho e molhado. Às vezes, assistindo a uma novela ou a um filme, ou mesmo a um show, sei lá, a doença do filho de uma amiga, a morte da mãe de alguém.
Estava lendo a Martha Medeiros outro dia, e corri atrás de dois filmes que ela citava na crônica “O sentido da vida”. São eles: “O declínio do império americano” e “Invasões bárbaras”. São filmes antigos, produções franco-canadenses; assina o roteiro e a direção o canadense Denys Arcand; um, o declínio, de 1986; o outro, as invasões, de 2003. Um é continuação do outro. Parece que tem ainda uma continuação de “Invasões bárbaras”, que seria “A era da inocência”, mas a esse não assisti. São dois grandes filmes que merecem ser vistos, sem dúvida nenhuma.
No primeiro, um grupo de intelectuais, professores universitários, acompanhados de suas mulheres e amigas (tem casados, solteiros, gay), se reúne para um jantar numa casa à beira de um lago e conversam sobre temas dos mais variados, tais como moral, filosofia, liberação sexual, política, valor da intelectualidade, liberdade, dentre outros.
Mas foi no segundo que me desmanchei como maionese desandada. Esse mesmo grupo volta a se reunir quase 20 anos depois, em razão da doença terminal de um deles. O filme, além do drama, expõe o embate entre duas visões de mundo, a libertária e a pragmática. É inteligente, sutil, sarcástico e tragicômico, e explora questões que estão na cabeça de qualquer um. Quer uma delas? O que dá sentido à vida? A Martha é genial na sua crônica sobre isso.
O fato é que numa parte do filme a enfermeira diz para o filho do personagem marcado para morrer (pai e filho não se dão muito bem) pra ele não deixar de tocar o seu pai e dizer que o ama. E o arrependimento por não ter feito uma coisa tão singela me sacudiu no sofá e me encharcou; mesmo a assistir à morte engolindo o meu dia a dia, mesmo assim não fui capaz de sair da inação, de acender uma luzinha — ô acorda! —, de chegar à sua casa e dizer algo tão verdadeiro, segurando a sua cabeça diminuída e vazia de cabelos junto à minha: “eu te amo, pô!”
Ilustração: Andre Ermolaev
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