SER OU NÃO SER >> Albir José Inácio da Silva
O Jornal dos Sports prometeu uma
edição com o resultado para aquela tarde. Depois do almoço, tínhamos descido à
banca umas quatro vezes cada um, eram cinco horas, e nada. Chefe e colegas estavam
intrigados com nossas fugidas, segredos e olhares conspiratórios.
— Saiu nada não! — gritava já o
jornaleiro antes que eu me aproximasse.
E foi assim até o final do
expediente. Iríamos até a sede do jornal, que costumava colar o resultado na parede.
Uma caminhada boa pelo Centro, mas era melhor que ficar esperando na banca.
No início daqueles plúmbeos anos
setenta, naquele subúrbio que só comemorava a vitória da Portela, a salvação
passava pelo juízo final chamado vestibular. Vestibular que podia dar o paraíso
da universidade ou a eterna condenação de permanecer coisa nenhuma.
“Tornar-se alguém”, “virar
gente” ou ainda “ser alguma coisa” eram expressões repetidas à exaustão em
nossas cabeças adolescentes até se tornarem uma obsessão. E diziam todos que
eles não tinham conseguido ser nada, mas que nós tínhamos a obrigação de ser.
Ninguém descia à minudência
filosófica de que, se precisávamos nos tornar, era porque não éramos. Nossos
pais e demais parentes, novos e velhos, pacificamente concordavam que não eram
ninguém.
Apesar de me parecer absurdo a
princípio, acabava participando da crença, pois se eles se diziam ninguém, quem
era eu para contrariá-los. E a mim caberia salvar a estirpe, tornando-me
alguém, passando no vestibular.
Mas qual não foi nossa surpresa
ao sair do trabalho! O jornaleiro prendia com pregadores de roupa a edição extra
com o título “Resultado do Vestibular”. Juntamos moedas, porque nosso dinheiro
era contado para o trem, e entramos no botequim com o jornal na mão.
O nervosismo amarfanhava as folhas
procurando instituições, cursos e números de inscrição. Eu me achei na UFRJ,
mas calei, não queria comemorar até que Ronaldo achasse o seu número. Depois do
que pareceu uma eternidade, ele gritou:
— Achei... tá aqui. Passei! — só
então eu respirei fundo.
— Eu também! — consegui dizer, e
nos abraçamos sem palavras porque já não as tínhamos.
Seu Manel, o dono do bar, comemorou: — Parabéns, garotos! — e não cobrou o refrigerante que engolimos queimando a
garganta. Tínhamos pressa, não havia celulares ou telefones em nossa casa, e
precisávamos dar a notícia: éramos alguém!
Em pouco tempo descobri que não
virei gente — na faculdade, calouro é chamado de “bicho” — , mas talvez já fosse alguém
antes do vestibular. Eu e os outros, às vezes melhores pessoas que os graduados.
Mas naquela hora, e nos dias que
se seguiram, os problemas do mundo acabaram, a ditadura era só um detalhe
histórico e a pobreza não doía quando se passava no vestibular.
Comentários
Acho que é a primeira crônica que leio sobre esse tema e com esse ponto de vista.