A REZADEIRA — 2ª PARTE >> Zoraya Cesar
A mulher do outro lado da linha quase gritava, aos prantos, alguma coisa sobre possessão, marido, espíritos malignos.
Chovia muito, estava um pouco frio — e as articulações reumáticas da velha Rezadeira lhe diziam que esfriaria mais. O ideal seria tomar uma boa xícara de chocolate quente e ficar em casa, mas alguém lhe pedira ajuda; portanto, ajudar ela iria.
Preparou o ritual que sempre fazia antes de sair a trabalho: ofereceu uma vela na intenção de Nossa Senhora do Desterro, outra a São Cipriano; sentou-se em sua cadeira de balanço, acendeu o cachimbo e entrou em oração. Pediu por seu Espírito, para que não arrefecesse frente ao medo ou às tentações; por sua Alma, para que não fosse arrastada pelas forças do Inferno; e luz, para cumprir sua Missão de acordo com a Vontade Divina.
Entre uma baforada e outra, os olhos fechados, deslizava os dedos por suas guias de contas e cantava. Cantava cantigas de proteção e exortação que, um dia, algum xamã, pajé, curandeiro, druida, feiticeira, balalorixá lançara aos céus e os céus gravaram no ar que circunda a Terra, por anos e séculos, para serem captadas por quem tem ouvido para ouvi-las.
Deixou recado para a afilhada com a vizinha, chamou um táxi e partiu com sua bolsa de apetrechos; sua experiência; sua fé; e um pé atrás.
Ao chegar, foi recebida por uma mulher bonita e bem tratada, de longos cabelos louros e olhos profundamente azuis, inchados de tanto chorar. Velha Vó Dindinha foi convidada a sentar, e a mulher pediu licença por alguns instantes.
A sala era grande, decorada por móveis caros e de gosto duvidoso, naquele estilo pseudo-elegante que agrada aos novos-ricos. Mas a velha Rezadeira percebeu muito mais que isso.
Toda casa tem sons que lhe são próprios, como vibrações e vozes de antepassados, lares e ectoplasmas, inaudíveis aos ouvidos do corpo. Essa casa, no entanto, estava inteiramente silenciosa. Velha Vó Dindinha também não vislumbrou a presença de qualquer guardião dos moradores. Encontrar uma casa praticamente desabitada pelo mundo espiritual era fato raro, mesmo para ela, que já vira tanta coisa nesse mundo — e no outro. E ainda havia o estranho cheiro de café com aguarrás que permeava o ambiente. Antes, porém, que chegasse a uma conclusão, a mulher voltou.
Seu nome era Tiffany Cristine, e se dizia desesperada. Conhecera o marido — um empresário rico e muitos anos mais velho — no salão de cabeleireiro onde trabalhava, apaixonaram-se e casaram. Ao voltarem da lua-de-mel, ele foi subitamente acometido por uma estranha doença que nenhum médico conseguia diagnosticar. Entrara em estado de estupor, do qual só saía para gritar palavras incompreensíveis e ranger os dentes com aparente ódio. Ela podia jurar, de pés juntos, que já o vira levitar poucos centímetros acima do colchão.
A mulher chorava sem parar, era horrível, balbuciava, tivera de amarrá-lo à cama, pois, quando alerta, ficava violento, quebrava coisas, tentava agredi-la, logo ele, tão carinhoso. Desistira de contar com a medicina tradicional e começara a percorrer centros espíritas de todas as linhas, igrejas de todos os matizes, sem resultados, até que uma amiga de uma amiga indicara o nome de Velha Vó Dindinha.
— A senhora é minha última esperança. A senhora tem que tirar meu marido dessa situação, eu acho que ele está possuído.
Velha Vó Dindinha, disso, não tinha dúvidas. Por tudo o que percebera na casa e pelo que fora relatado, ela sabia que havia o dedo, a mão, talvez o corpo inteiro de alguma entidade do Mal naquela história. O que ela ainda não sabia era de onde vinha a desconfiança de que a mulher escondia algo. Pediu para ver o doente.
O quarto era lúgubre, mal-iluminado por uma luz branca e fria. “Ele não aguenta a luz do sol”, explicou Tiffany Cristine. Mesmo enxergando mal, Velha Vó Dindinha pôde ver o suficiente para se sobressaltar: o homem estava apodrecendo, sendo comido por dentro e... ela entendeu o porquê do cheiro de café com aguarrás. Era para disfarçar o odor pútrido que tresandava do desinfeliz.
O homem abriu os olhos e, de repente, pôs-se a uivar. Um uivo triste e soturno, como o de um lobo às portas da morte. O coração de Velha Vó Dindinha, forte que fosse, confrangeu-se, compadecido — era muito sofrimento. Mas ela não estava ali para sofrer junto, estava ali para ajudar.
Tiffany Cristine começou a gritar, descontrolada, não aguentava mais aquilo, meu amor, minha vida, volta pra mim... Os uivos pararam. E foram substituídos por palavras vociferadas, cheias de baba e ódio, palavras que a Velha Rezadeira reconheceu como sortilégios haitianos. Ela tremeu. Não ter medo da entidade que possuíra o desvalido seria uma temeridade irresponsável. Quanto maior o medo, maior a cautela. E Velha Vó Dindinha não vivera tantos anos por agir irrefletidamente.
Voltaram à sala. Sentaram de frente uma para outra. A mulher, loura, jovem e chorosa. A outra, encanecida, idosa e severa. Seus olhos se encontraram. E saíram fagulhas desse encontro. Num átimo, não eram mais cliente e contratada. Eram oponentes, adversárias e perigosas.
— Agora — disse acerba, mas calmamente, a Velha Rezadeira — Você vai me dizer a verdade. Se quer a minha ajuda, eu preciso da verdade.
A 3ª e última parte será publicada em 31 de julho.
Comentários
Só falta agora colocar as duas para se beijar! Cuidado para não "detonar" a audiência, hahaha...
Já não bastava dividir em duas partes?
Até 31 de julho, não como, não durmo e nem vejo TV, vou ficar de plantão na frente do computador!!!!
beijo e até lá!
Anônimo 2 - nada de beijos de novela, até pq eu não assisto novelas!
Anônimo 3 - cuidado com essas misturas! Vai acabar limpando o banheiro com café e tomando a aguarrás! E a mistura funciona sim, só nao vou dizer como...rsrssrs. E pra quê vc haveria de querer fazer isso? Tá matando alguém? Cruzes...
Beijos a todos
Bjs, Cris
Conta logo!!!!!!
Muito bom o seu texto.
Vou aguardar ansiosa para saber o desfecho da história. Quero saber o que Vó Dindinha vai fazer. E qual será a resposta da Tiffany.
Bjo
Estou seguindo o seu blog.
Já estou ansiosa pelo terceiro capítulo da história.
Parabéns!!!