A REZADEIRA — 3ª E ÚLTIMA PARTE >> Zoraya Cesar
— Conte-me a verdade, repetiu Velha Vó Dindinha, empertigada, as mãos nodosas e ossudas sobre os joelhos.
Tiffanny Cristine entreabriu os lábios, deixando à mostra uma fileira de dentes pequeninos; os da frente, um tanto separados, davam-lhe um certo ar infantil e carente. Como as aparências enganam, pensou a Rezadeira.
— Não vou ser bonita e gostosa pra sempre. Antes que Edgar me troque por outra, quero o dinheiro todo dele. Agora.
Velha Vó Dindinha aguardou. Essa parte ela já intuíra. Interessava-lhe o que ainda não fora dito.
— Preparei um feitiço pra ele me obedecer cegamente, e assinar um papel me passando todos os bens.
Magia negra básica. O que dera errado? Por que uma entidade invadiu o corpo do marido, corrompendo seus canais energéticos com tanta violência, que o cheiro nauseabundo da podridão exalava para o plano físico?
— O que você prometeu em troca?
— Por que acha que prometi alguma coisa? — respondeu Tiffany, petulante.
— Porque esse é um trabalho relativamente fácil, até para amadores. Se houve possessão, é porque você prometeu alguma coisa. O quê?
A mulher hesitou. O feitiço saíra de controle e agora precisava da ajuda daquela velha antipática. Depois daria um jeito nela também.
— Prometi a Herrelle que, depois de Edgar assinar tudo, eu a deixaria ficar com o corpo dele.
Horror, horror. Uma das mais trevosas entidades vodu! Tão poderosa quem nem os Guardiões da casa a suportaram. O medo que sentira era justificado. Olhou a mulher à sua frente — tão linda, tão loura, tão olhos azulíssimos: uma assassina fria e desalmada, que não tivera escrúpulos em trocar uma vida humana — uma vida que não era sua — por dinheiro. Sabendo que a entidade desintegraria o corpo do infeliz lentamente, tomando posse, depois, de sua Alma. Velha Vó Dindinha estremeceu.
— O que você quer de mim?
— Que faça ele assinar os papeis. Tanto faz se vai tirar aquela coisa dele ou não. Eu quero os papeis assinados. Depois, prometo que vou interná-lo no melhor hospital, asilo, sei lá, pra ele ser cuidado e morrer em paz.
Morrer em paz! Velha Vó Dindinha teve ímpetos de bater naquela boneca loura. Tudo o que o pobre coitado não conseguiria seria morrer em paz.
— Você está louca! Não posso concordar com essa barbaridade!
Tiffany Cristine riu.
— Por mim, tudo bem. Ele vai morrer, eu herdo parte dos bens. E a senhora será responsável pela morte dele...
Então, era isso. Deixar o desafortunado morrer lenta e dolorosamente, ou ajudar uma criminosa. O que fazer? Sentia-se mais à vontade trabalhando com Quimbanda, embora a Santería e o Candomblé tivessem as mesmas raízes. Teria ela forças e conhecimento para lidar com entidade tão maléfica? Seria um combate mortal.
A mulher recostara na cadeira, tranquila e sorridente. Entendia o suficiente de feitiçarias para saber que a velha não poderia salvar Edgard sem sua permissão. Tinha, portanto, a Rezadeira nas mãos.
— Vou ajudar seu marido.
— Ele vai assinar os documentos? — foi tudo o que Tiffany Cristine quis saber.
— Tenho de tirar aquela coisa. Posso garantir que ele recobrará a consciência. O resto é com você.
Tiffany não ficou satisfeita, mas pensou melhor. Livre da entidade, o marido ainda estaria frágil e abobado. Ela, loura, linda, o sorriso charmoso, conseguiria o resto. Assentiu.
— Mais uma coisa — disse a Rezadeira. Tiffany resmungou. Só faltava aquela velha idiota fazer-lhe sermões. – Deixe que eu cure seu marido, sem você levar nada em troca. Assim não sofrerá as conseqüências de seu ato.
— Não perca meu tempo nem o seu. Diga logo quanto quer pelo serviço que tenho mais o que fazer.
Velha Vó Dindinha calou-se. Jamais aceitaria dinheiro manchado de sangue.
Contou tudo à afilhada, que chorava, aflita, pois a probabilidade de a madrinha morrer era grande: já entrada em anos, adoentada, enfrentar uma entidade tão poderosa poderia ser fatal. A Rezadeira, por seu lado, estava tranquila. Morrer em missão era uma honra que ela sempre pedira ao Senhor. No entanto, não era hora de pensar em morrer, mas em cumprir seu destino. Deu início à desdemonização.
Foram 21 dias de jejum e oração, dentro de um círculo de 21 velas de 21 dias, seguindo as rezas fortes de São Cipriano, implorado o banimento da entidade à Nossa Senhora do Desterro, invocando Seres de Luz e os Loa, os intermediários entre os homens e o Bom Deus. O mundo espiritual tem suas próprias leis, e aquela entidade quebrara uma delas, ao não cumprir sua parte no acordo. Os seres invocados em nome da Bondade Divina fizeram seu trabalho. O demônio saiu do corpo de Edgar e voltou para as trevas.
O desrespeito à ksênia, a sagrada lei da hospitalidade, é crime imperdoável no mundo espiritual. Por cupidez, Tiffany infringiu essa regra, entregando o marido a uma entidade mortal. Como dissemos, o mundo espiritual tem suas próprias leis, e algumas são severas. As Erínias cumpriram seu papel e a castigaram com a loucura eterna. Nunca, enquanto viveu nessa terra, Tiffany recuperou a razão.
O Universo recuperara seu equilíbrio.
O Universo recuperara seu equilíbrio.
O corpo inerte, desidratado e anêmico de Velha Vó Dindinha foi internado em um hospital, em estado gravíssimo. Os médicos não tinham qualquer esperança de recuperação. O esforço cobrara seu preço.
O mundo espiritual, no entanto, tem leis próprias que a ciência dos homens desconhece.
Velha Vó Dindinha abriu os olhos e suspirou. Teria morrido de bom grado, mas, se não era sua hora, então, não era sua hora. Estava pronta para a próxima missão.
Comentários
Zô, linda, pelo tanto que você ilumina nossas manhãs de sexta, sempre com tão bom entretenimento, seus tratos são todos de pura luz!
Tiffany nenhuma se sagra vencedora com Zozô no comando! e Salve, Nossa Senhora e todos os anjos e santos!
beijo!
Marcia
Gerson
Quem quiser, tira bastante ensinamento disso tudo.
Progredindo....
Bjs Sônia