A REZADEIRA - 1a PARTE >> Zoraya Cesar
Os joelhos estavam duros pela
artrose, mas a musculatura era ainda rija, os tendões esticados como a corda de
um arco antes do tiro. A mulher era franzina e seca como um
gafanhoto, não havia uma gordura, peso, barriga, nada excedente. Seu semblante
era severo; as orelhas, grandes; a boca, uma linha fina e sem lábios, como a de
alguém acostumado a ouvir muito e falar pouco.
Era idosa, muito idosa,
certamente, mas sua idade era indefinível. Podia ter 70, 80, 90 anos, impossível
precisar. A pele negra contrastava com os cabelos brancos aqui, amarelados ali,
cortados rentes à cabeça. Usava um vestido muito simples, de cor clara, sem
enfeites, e andava devagar, compassadamente, apoiada num grosso cajado, que
parecia mais pesado que ela, tão raquítica.
Perdera a conta dos anos, mas
sabia que desde pequena estava na labuta, a pele áspera e as mãos calejadas
comprovando o duro trabalho na roça. Nem se lembrava mais quando deixara de ser
a Menina Dinda para ser conhecida como Velha Vó Dindinha. Mal sabia ler ou
escrever, mas isso nunca lhe fizera falta. Era quituteira e doceira por
profissão, e gerações de famílias abastadas não abriam mão de seus serviços nem
pelo chef de cuisine mais badalado da cidade.
Ela possuía, no entanto, outra
especialidade, pela qual era ainda mais afamada. Uma especialidade que exigia
visão além das aparências e dos corpos opacos; audição para ouvir vozes que não
pertenciam mais a esse mundo; olfato para diferenciar o ponto em que um chá de
ervas deixa de ser um remédio para se transformar em veneno.
Rezadeira, benzedeira, bruxa,
feiticeira. Dindinha nascera com um dom. Tirava quebrantos, curava espinhela
caída, afastava mau olhado, quebrava as forças dos inimigos, expulsava
demônios, sarava diversos males com suas garrafadas de ervas, fazia partos e
dava simpatias para curar bebedeira, amansar marido, trazer esposa de volta,
colocar filho na linha. E tudo funcionava.
Se ela conhecia magias negras?
Sim, muitas, maléficas e letais. Mas, por mais que pedissem, ameaçassem, oferecessem
fortunas, ela jamais cedeu. Desde que descobrira seu dom, decidira que seguiria
o seguinte lema: fazer o bem, mesmo que difícil; não fazer o mal, mesmo que
possível. De forma que Velha Vó Dindinha nunca amealhara riquezas, apenas o
necessário para uma velhice tranquila. Estava aposentada e sua pensão pouco
mais que modesta dava para todas as suas necessidades, nunca precisara de muito. Não tinha folga,
sábado, domingo ou feriado; nunca tirara férias. A qualquer hora que dela
precisassem, estava a postos.
Enquanto morara em Salvador, era a primeira das iabás a se apresentar para lavar as escadas de Nosso
Senhor do Bonfim. Quando veio para o Rio de Janeiro, em vez de lavar escadas,
limpava a sacristia e fazia a comida do padre da paróquia, sempre de graça. Ia à missa todo domingo, e tinha duas grandes devoções: Nossa Senhora do Desterro e
São Cipriano.
Mesmo para os fortes, contudo, a face
feia da velhice um dia bate à porta, e com Velha Vó Dindinha não foi diferente.
Seu corpo todo doía incessantemente, e os sentidos, antes perfeitos – até então
ela mesma colocava o fio na agulha! – se apagavam aos poucos. Revolta, não
sentiu, sabia que não nascera para semente. A afilhada foi morar com ela, para ajudar na
lida da casa e nos outros afazeres. E como Deus não desampara quem trabalha em
seu Nome, a afilhada, além de excelente pessoa, também recebera o dom, e assumira
o lugar da madrinha como quituteira, benzedeira e outras ‘eiras'.
Velha Vó Dindinha estava doente e cansada, mas enquanto
estivesse sobre a Terra cumpriria sua missão sem se queixar e ajudaria quem
dela precisasse.
Foi num domingo chuvoso que ela recebeu um telefonema...
Continua no dia 17 de julho.
Comentários
Meu reino (se eu tivesse um) pelo dia 17!