PASSAGENS << SORAYA JORDÃO
Era 1º de janeiro e eu ainda trazia no rosto a maquiagem cheia de glitter da noite anterior, prova irrefutável da certeza de novos e felizes dias. Ao meu redor, as listas de desejos e metas para os tempos vindouros. Encabeçando a missão “Renascimento”, três itens: uma hora de caminhada diária, extinção das sobremesas e a moderação no uso do celular.
Pronta para dar início à determinação imposta por esse poderoso ser que desabrocha em mim todo dia 31 de dezembro, mas, ao mesmo tempo, ainda sob influência daquele que me governa o restante dos dias, decidi dar uma olhada no WhatsApp antes de agir. A me esperar, a doída mensagem sobre a morte de uma grande amiga.
No ruir daquele segundo, estilhaços de fé, esperança e ânimo rolaram pelo chão do quarto carreados pelas lágrimas que teimavam em banhar o novo ano.
O lamento insistia em renunciar à realidade. Esse não seria o único dia capaz de nos fazer crer na felicidade sem medo do revés, sonhar sem temer desapontamentos, viver sem precisar se antecipar/ preparar para todo tipo de infortúnio? Não seria essa a razão de toda comemoração, foguetório e confraternização mundial?
Um desamparo espinhoso tomou conta de mim. É terrível não ter onde se agarrar. Não poder desfrutar da leveza que a ingenuidade propicia e só os tolos conseguem preservar.
Quão boba fui em acreditar nessas sandices de Réveillon? É apenas mais um dia como outro qualquer na sequência ininterrupta e tediosa do tempo. Talvez esse seja o único motivo para inventarmos um recorte, um rito, um ponto de hidratação para a existência. Um acostamento emocional.
Rasguei as listas, cuspi toda a esperança sobrevivente, mergulhei na constatação de que a vida segue à revelia, divertindo-se com suas traquinagens. Não há possibilidade de controle, previsão ou garantia. Quem sabe essa é a origem daquela estranha mania de zerar expectativas, esfriar anseios pelo medo da decepção. Não é curioso que seja mais fácil praticarmos o silenciamento dos ânimos?
Chega dessa farsa! Nada mudará ao romper do ano. Coisas ruins e coisas boas acontecerão. A cada segundo a vida aperta o gatilho nessa roleta russa. Sem regras. Sem apelos.
Minha amiga se foi, justo no dia que prometia, a todos nós, uma sensação mágica de blindagem contra o sofrimento. Traidor! Como pude acreditar? Lembrei dela… do seu sorriso franco, humor doce e jeito ingênuo de crer no futuro. Era leve, divertida, incansável.
Comecei a rescrever as listas. Sendo verdade ou mentira, o mundo é menos nublado com um pouco de ilusão. Que mal há em apostar na sorte? Acreditar no amor? Se deixar levar pela emoção?
Outra vez, ela me veio à mente…Em nossa última conversa, já bem abatida pela doença,
compartilhou comigo sua imensa alegria com a formatura do filho. Nada a venceu ou impediu de estar lá.
Sim, ela foi feliz. Eu não quero desperdiçar o tempo com medo de ser.
A vida é uma convocação à coragem e ando saturada dessa demanda de viver sem tombos ou arranhões.
Não vou recusar o escorrega por medo de sujar a roupa. Quero o balanço lá no alto antes de voltar. Cabelo ao vento e uma gargalhada no ar.
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