UM OBJETO ESQUECIDO E ENFERRUJADO >> Carla Dias
Ter serventia é importante para ela. Desfaz-se com facilidade do que já deixou de utilizar. Despe-se do que um dia ambicionou ao sinal de esgotamento de interesse.
Reconhece que faz por objetos o que nunca aprendeu a fazer por pessoas. Oferece a eles a dedicação necessária, insistindo que se trata de consciência ambiental e social. O planeta e os desalentados ganham com a forma como ela conduz sua rotina. Sua própria vida sai ganhando, apesar de sua mente insistir em cochichar que lhe falta algo, que há espaço sobrando, que aquele tapete é um tanto indelicado.
Ela gosta da indelicadeza do tapete da entrada. É um aviso aos que nele pisam somente por curiosidade mordaz.
Entende a linha do tempo dos objetos, que também lhe servem para investigação. Por meio deles, descobre a extensão das emoções cativadas na simbologia das suas fissuras. Lê pessoas ao restaurar seus objetos, mas não considera esse talento um benefício, ao menos não para si.
São depositados sobre o tapete indelicado às quartas. Não se importam com a indelicadeza, mas sim com suas buscas pessoais. Precisam que seus objetos sejam tratados por ela. Assim, atendem às suas excentricidades. Deixam as próprias histórias à entrada da casa, feito oferenda, e permanecem longe da vista da mulher da última casa da rua sem saída.
Ela escolhe somente um objeto. Os outros, os ignorados, são colhidos pelos seus proprietários, assim que ela fecha a porta. Eles se refugiam na esperança de que, na semana seguinte, terão a sorte de seu objeto ser o escolhido.
Ela acha a esperança um martírio enfeitado de aprazimento.
Restaurar lhe ajuda a compreender o valor que não há como ser mensurado em moeda. É saudade, mágoa, afeto, felicidade, êxtase e outras emoções sortidas, encravadas na solidez de um objeto. É a memória dócil ou brutal que não pode deixar o recinto da existência de quem a possui.
Os clientes nunca trocaram uma palavra com ela, não lhe contaram suas histórias. Por isso, escandalizam-se com as longas cartas escritas à mão que acompanham o objeto restaurado. Eles as leem como se fossem um resumo dos seus labirintos existenciais. Para ela, são apenas notas de cuidado para que o objeto não se deteriore e acabe no antes.
Escorrega as mãos no seu corpo e reconhece suas curvas. Sente a textura da sua pele a lhe ferir a gentileza macia do toque. Imagina quantos outros devem tê-lo tocado, valendo-se do que oferecia quando ainda era objeto de desejo.
Interessar-se tem sido a questão. Há muito, desinteressou-se por gastar tempo com o que ou quem não lhe intrigasse, a ponto de lhe tirar o sono, a fome, arrancá-la da inércia emocional para um período de tempestades.
Um objeto esquecido e enferrujado. Ela o observa, acomodado sobre a mesa de trabalho. Pergunta-se qual seria o motivo de tamanho esquecimento ou a motivação para o restauro. Quem o deixou sobre o tapete grosseiro, acredita ainda ser possível salvá-lo.
Sabe que dará trabalho, porque o tempo gosta de deixar marcas, assim como o abandono. Contudo, aprecia cuidar do que não funciona e identificar imperfeições que garantam ao objeto identidade e serventia.
Acredita que a vida das coisas podem ser bem mais úteis quando pertencem a quem se interessa por elas.
Acha que é bonita a vida das coisas.
Imagem © Lukas Baumert por Pixabay
Comentários
Acredita que a vida das coisas podem ser bem mais úteis quando pertencem a quem se interessa por elas.
Acha que é bonita a vida das coisas.
Alguém me diga, por favor, COMO a Princesa das Palavras encontra sentido em tudo que está escondido sob as asperezas da vida? Como digo sempre, os textos da Carla já nascem clássicos.